Graças a Deus. Não há ironia no título com que François Ozon remata aquela que foi a sua incursão no mais negro lado da Igreja Católica, em relação ao qual, se toma parte neste seu novo filme que chega amanhã às salas, é apenas pela decisão de contar as histórias de três das vítimas de abusos de Bernard Preynat. O padre no centro do escândalo de pedofilia que rebentou em França em 2014, a partir do momento em que uma das vítimas, Alexandre Hezez, decidiu ressuscitar o caso que a diocese de Lyon tinha abafado por décadas ao descobrir que esse mesmo padre por quem tinha sido abusado continuava a lidar com crianças.
Não tem o mesmo apelido, mas continua a chamar-se Alexandre (Guérin) a personagem que François Ozon decidiu entregar a Melvil Poupaud, que na semana passada, de visita a Lisboa, conversou com o i a propósito do filme que, depois de um interregno de dez anos, marcou o reinício da sua colaboração com o realizador de 8 femmes (2002), Swimming Pool (2003) e Jovem e Bela (2013), que com Graças a Deus venceu este ano o seu primeiro Urso de Prata de Melhor Realização em Berlim.
Quando Ozon chegou aos três homens em quem viria a inspirar-se para escrever Graças a Deus, a sua ideia era fazer um documentário. “Foram eles que o convenceram a fazer um filme de ficção. Disseram-lhe que já tinham feito documentários, que já tinham dado entrevistas aos jornais e às televisões, eles próprios acharam que seria mais interessante e útil para eles um filme com a assinatura de François Ozon”, conta Melvil Poupaud. “Quando ele me apresentou o argumento, sabia que tinha havido todo este processo, que o que ali estava era muito próximo da realidade e, portanto, não quis conhecer o Alexandre. Não queria estar a representar com o Alexandre em mente, não era o meu objetivo, a personagem já era próxima o suficiente”.
Alexandre, François e Emmanuel. A partir das suas histórias (de nomes próprios, apenas o do último não corresponde ao do homem no qual Ozon se inspirou na criação da personagem), o realizador construiu um filme em três partes. De personagem em personagem, até que se monte a teia final. Aquela que se aperta em torno não só de Preynat como da arquidiocese de Lyon – e de Philippe Barbarin, cardeal e arcebispo, acusado no mesmo processo por ao longo dos anos ter abafado sucessivas queixas dos abusos cometidos por Preynat contra as crianças do grupo de escuteiros que tinha à sua guarda, incluindo em viagens a Portugal. Os casos conhecidos remontam à década de 1980 e aos primeiros anos da seguinte. “É como se fossem três filmes num. Seguimos um personagem, depois mudamos para outro, e outro, e o estilo e a estética cinematográfica mudam com os personagens também”.
Por oposição a Emmanuel, Alexandre é o clichê do conservador burguês de Lyon. “Ele é muito francês – e muito de Lyon, uma cidade muito mais tradicional e muito mais burguesa do que Paris. É o burguês tradicional francês: muito conservador, com cinco filhos… Para mim foi muito interessante criar essa personagem, compô-la, porque é um tipo de homem com o qual nos cruzamos nas ruas de Paris ou de Lyon e do qual temos uma ideia muito clara, cheia de preconceitos, de quem são e como se comportam. Interessou-me trabalhar esse clichê, esse tipo de personagem muito caracterizado pelo tipo de roupa, o corte de cabelo, a família, a missa ao domingo… que, no final, acaba por se tornar mais corajoso e complexo do que de início julgávamos que seria”.
Para o ator (também realizador e autor), que trabalhou já com os cineastas Raúl Ruiz, com quem se estreou, ainda criança, no surrealista La ville des pirates (1983), Eric Rohmer, Arnaud Desplechin, Zoe Cassavetes e Xavier Dolan (como protagonista de Laurence Para Sempre), não foi difícil colocar-se no lugar de Alexandre. “Não sou católico, mas sou crente em Jesus Cristo. Acho que foi também por isso que o François quis que fosse eu a fazer o papel, porque seria importante que o ator que interpretasse o Alexandre compreendesse as suas questões, os seus dilemas. E estava certo”, diz. “Na verdade, não tive de me preparar assim tanto. Senti-me imediatamente tocado e pronto para fazer as cenas”.
Cenas como aquela em que Alexandre é quase forçado pela psicóloga da diocese (Régine Maire, que, como a defesa do padre de Lyon, tentou também impedir judicialmente a estreia do filme) a dar a mão a Preynat, para que rezem juntos, num dos momentos mais perturbadores do filme que se prolonga por duas horas e 17 minutos. “Assim que li o argumento percebi que seria uma cena que me tocaria muito, porque lida com o perdão e com a fé. Conseguiremos perdoar quem mais nos magoou?”
Em última análise, é sobre isso que nos questiona Graças a Deus. Sobre até onde será o ser humano capaz de perdoar. Melvil Poupaud não tem como discordar: “É o tema principal do filme. Para mim, essa é a parte mais importante da religião, ou da crença: a ideia de perdão. Foi, aliás, isso que me guiou para o campo espiritual: o poder que Deus nos dá para perdoar”.
Foi só na primeira projeção do filme, em França, que Poupaud conheceu Alexandre. “Foi com a mulher e com os filhos – que na verdade são seis, no filme são cinco, porque seis pareceram demais. Foram todos e fiquei realmente impressionado com todo o apoio da sua família nesse seu terrível e muito corajoso caminho. E os filhos, que hão de ter agora entre 12 e 20 anos e hão de ter sofrido muito, têm um orgulho imenso no pai. Tudo o que está no filme da relação do Alexandre com os filhos é real”.
Pela altura da estreia internacional do filme, na Competição do Festival de Cinema de Berlim, em fevereiro passado, o caso continuava ainda por resolver nos tribunais franceses – a presunção de inocência foi, de resto, a razão invocada pelo advogado de Preynat na tentativa de impedir a sua estreia. “A questão é que ele sempre admitiu a culpa e é por aí que vai o filme”, nota o ator. “Ele não nega, não tenta escapar. Há também uma certa coragem do seu ponto de vista. Desde o início do filme que ele diz que tem um problema com crianças. E é isto o mais terrível: que mesmo que ele tenha admitido sempre a culpa, a Igreja nunca tenha tentado pará-lo ou afastá-lo, que se tenha limitado a mudá-lo de lugar em lugar”.
E acaba por não o julgar François Ozon. O ator Bernard Verley ajuda a retratar Preynat como um velho fragilizado, perdido quase. “A ausência de maniqueísmos é parte do talento de Ozon, que o retrata não como um homem ‘mau’, mas também como uma vítima dos seus próprios demónios e pulsões. Parte do sucesso do filme vem do facto de não tomar uma posição. De contar esta história e deixar espaço a cada um para tomar as suas decisões”.
Quanto ao título é, afinal, uma citação do cardeal Barbarin – e talvez quanto a ele seja difícil não tomar posição – na conferência de imprensa que deu quando a pressão da associação entretanto criada pelas vítimas o obrigou a quebrar o silêncio: “La majorité des faits, grâce à Dieu, sont prescrits” – “A maioria dos factos, graças a Deus, estão prescritos”.