Boca Aberta. O Lobo Mau tem medo, e não há problema nenhum

Boca Aberta. O Lobo Mau tem medo, e não há problema nenhum


O projeto Boca Aberta, direcionado aos mais pequenos, volta ao Teatro Nacional D. Maria II com Abre a Carta, Lobo Mau!, um espetáculo que nos vem falar de medos.


Afinal, depois de um início de relação atribulada que todos conhecemos, a Menina do Casaco Vermelho e o Lobo Mau não se tornaram inimigos. Pelo contrário. Todas as quintas-feiras, ela visita-o: leva-lhe amoras, bolinhos de manteiga, os muitos medos que tem por resolver (há um que a perturba particularmente: o medo dos relógios de cuco) e ainda todas as cartas que estão no correio. Só que há uma missiva que, por mais que a Menina insista, o Lobo nunca quer abrir. De que terá ele medo? Pior: até o Lobo Mau tem medo?

É então sobre os tantos medos que nos vão assombrando que Abre a Carta, Lobo Mau!, a nova peça infantil do Teatro Nacional D. Maria II (TNDMII), pensada para crianças entre os três e os seis anos, se debruça. “Este é o segundo espetáculo de uma trilogia à volta da figura do Lobo Mau. No ano passado com o Mau, Mau, Lobo Mau! já começámos a falar disto, do ter consciência do medo”, recorda Catarina Requeijo, a encenadora deste e dos vários espetáculos que integram o projeto Boca Aberta, que de há cinco anos para cá tem cumprido o objetivo de apresentar o mundo, os mundos do teatro aos mais novos. E, assim, fazê-los descobrir os mundos que têm por dentro. E, neste caso específico, “legitimar” o medo, “deixar que ele existia sem ter medo de falar dele”, nota a encenadora. “Mais do que não ter medos, é ter consciência deles e saber que podem ser ultrapassados. Este ano, falamos de resolver medos. E, às vezes, quando resolvemos um aparece outro por substituição. Vamos mudando de medo e vamos encontrando remédio para os medos. O facto de sabermos quais são os nossos medos faz com que possamos contorná-los ou enfrentá-los, e é disso que queremos falar”.

Mas como é que é que se fala disto, em palco, a crianças tão pequeninas? “São muito pequeninas mas são muito espertas”, brinca Catarina Requeijo. “É um espetáculo como outro qualquer espetáculo de teatro, em que há duas personagens que têm uma relação (a Menina é interpretada Sandra Pereira, o Lobo por Gonçalo Egito), e vamos percebendo no texto que se está a falar de medos. As crianças vão tirando conclusões muito curiosas que nós nem estávamos à espera”. Por exemplo: em Abre a Carta, Lobo Mau! o lobo dedica-se a tratar de medos e a sugerir remédios. Logo nos ensaios com o público, na semana passada, algumas crianças apontaram diversos ‘remédios’ para si próprios. “Alguns chegaram à conclusão que resolveram algumas coisas porque cresceram, e portanto o crescimento é uma forma de resolver os medos; que, se dormirem, o medo do escuro passa – portanto fechar os olhos ou dormir é uma solução para o medo. Houve também uma pergunta que fizeram muito engraçada: onde é que podiam comprar os remédios para os medos”, nota a encenadora que se dedica a trabalhar com públicos infantis há quase 20 anos e que, durante estas duas décadas, se continua a surpreender com a forma com os pequenos espetadores recebem a mensagem que lhes apresenta. “Há sempre reações muito surpreendentes, às vezes com uma profundidade que não estamos à espera, que não vem de uma compreensão intelectual, é intuitiva. Acho que eles me deixam sempre um bocado de boca aberta”, brinca.

 

Pensar no futuro

Abre a Carta, Lobo Mau! estará em cena no Salão Nobre do D. Maria II nos próximos sábados, até 14 de dezembro e, depois, novamente a 11 de janeiro, sempre às 16h00. Aos sábados, o espetáculo é dirigido também a famílias. Durante a semana, serão muitas as crianças das escolas que passarão por aqui. Por outro lado, o teatro irá, como é marca do Boca Aberta, aos jardins de infância. Nesta temporada, o projeto vai chegar a 135 salas e 45 jardins de infância da rede pública de Lisboa e, também como já tem vindo a acontecer, o Boca Aberta irá organizar uma oficina direcionada aos educadores de infância para que estes possam aprender diferentes técnicas que poderão levar para dentro da sala de aulas. “Por exemplo, no contexto dos jardins de infância com que trabalhamos, há muitas crianças que não falam português. Há técnicas do teatro que só requerem a expressão corporal a que os educadores podem recorrer”, explica a encenadora, notando que muitas vezes são os próprios educadores a pedir a colaboração, em termos formativos, do TNDMII.

Para muitos dos pequenos espetadores esta só não é a primeira vinda ao teatro porque já tinham assistido a outras peças do Boca Aberta em edições anteriores. “Isso é extraordinário, eles entram no teatro e dizem que já conhecem o sítio. É muito reconfortante vê-los a chamar quase casa a este teatro”, afirma Catarina Requeijo. Um cenário feliz, decorrente de um projeto que continua a tocar não só os mais pequenos como quem cuida deles: desde 2015, o Boca Aberta já estreou 11 espetáculos e só na última temporada chegou a quatro mil pessoas. Apesar do sucesso, Catarina Requeijo não tem dúvidas de que, de outro modo, os mais pequenos não chegariam tão depressa às potencialidades da expressão dramática: “Acredito que há um grande número de crianças que não entraria neste teatro se não fosse em contexto escola”.

Este é, portanto, um dos grandes propósitos do Boca Aberta: aproximar as crianças, desde tenra idade, ao teatro. E de que forma irá este projeto contribuir, quem sabe, para formar novos públicos? “Já pensei muito sobre isso, até aqui em conversa com o Tiago Rodrigues (diretor do D. Maria II), mas não conseguimos fazer futurologia. Claro que não conseguimos garantir que todas estas crianças, ou uma boa parte dela, se irão tornar espetadores regulares de teatro. Às vezes há um investimento grande na primeira infância e depois até pela forma como está organizado o ensino a partir do quinto ano, em que deixam de ter só um professor e passam a ter muitos, deixam de marcar visitas para fora e deixam de vir ao teatro. Não conseguimos garantir o futuro, mas conseguimos garantir o presente: e é muito importante lembrar que o acesso às artes é um direito. Ninguém se questiona da importância de aprender as letras e os números, é transversal que é essencial para desenvolver um certo tipo de raciocínio. Mas o confronto com obras artísticas também é essencial para desenvolver outro tipo de raciocínio. Mesmo que eles não venham em adultos, pelo menos tiveram esta presença na sua infância, numa altura em que absorvem uma série de coisas. Mas claro que a pretensão maior é a de que esta seja uma marca para a vida toda”.

Abre a Carta, Lobo Mau! é, portanto, a mais recente oportunidade do Boca Aberta na hora de dar aos mais novos – e relembrar os mais velhos – (d)as bases da literacia cultural. Sem medos.