Ernesto Sabato. “O louco ouve outro tic-tac”

Ernesto Sabato. “O louco ouve outro tic-tac”


Desentranhado da obra-prima de Sabato, “Relatório sobre Cegos” é uma novela que nos mostra a literatura como uma forma de loucura que nos permite regressar do inferno.


Consideremos todos os incentivos e subsídios postos à disposição de quem tenha uma propensão para o desequilíbrio mental. Se quiséssemos reduzir os livros de História aos períodos em que a lucidez triunfou no balanço dos grandes avanços, ficaríamos reduzidos a umas sebentas nobremente encadernadas mas cheias de páginas arrancadas, passagens truncadas, vazios inquietantes, em que seria impossível discernir um qualquer fio condutor. Haveria épocas inteiras em que a sanidade pareceria constituir um desvio, uma condenação íntima dos espíritos desenquadrados do seu tempo. E se nos restam relatos minimamente fidedignos desses períodos de banalização do absurdo e do terror, apreciamos a subtileza e rasgo dos cronistas que souberam registar o seu nervosismo e embaraço diante eventos mais delirantes  escabrosos, e mesmo o daqueles que não esconderam um encanto perverso, um certo regozijo pela terrífica matéria que lhes foi dado registar.

Não se consegue interpretar nenhum dos aspectos que dão relevo à existência humana sem que nos debruçemos nessas elaboradas ficções que permitem aos homens sintonizar frequências que reviram a lógica do avesso, infundem comunidades e nações de um propósito comum, tantas vezes delirante. A história da demência é, em grande medida, indissociável da história humana, e deveria ser devidamente destacada nos créditos de muito do que consideramos serem os grandes feitos, as passadas de gigante que fizeram tremer a terra inteira.

E é como uma chave de acesso a uma infindável trama que se desenha no “subsolo da alma”, nessas regiões clandestinas onde se sagram ou dilaceram as consciências que se confundem com a própria treva, que nos aparece uma novela como “Relatório sobre Cegos”, um longo capítulo que se deixa desentranhar sem demasiado esforço do monumental romance “Heróis e Túmulos (1961), tido como a obra-prima do escritor argentino Ernesto Sabado.

Publicado entre nós numa edição da Europa-América, em 1973, há muito esgotada, do romance surge-nos agora este fabuloso “apêndice” que tem merecido várias edições autónomas. Com uma nova tradução, a cargo de Miguel Filipe Mochila, este foi publicado há semanas com selo da Maldoror. Trata-se de um sagaz exercício que cruza a memória épica da literatura ocidental, numa narrativa que se apropria do ansioso registo de um romance policial para o sabotar sempre que a imaginação do leitor implora por um desfecho que arrume a trama.

O protagonista da novela, Fernando Vidal Olmos, alguém que se assume como um canalha, e que, por isso, não está entretido com os dramas beatos da consciência, mas se lança obsessivamente na investigação desses sinais de uma terrível conjura, um complô milenário entre cegos, numa organização regida por desconhecidos hierarcas que secretamente impõe os seus desígnios ao mundo. Para esse efeito, diz-nos ele que a Seita tem aos seu serviço todo um exército de videntes e bruxas de bairro, curandeiros, leitores de palmas das mãos ou de cartas e espíritas: muitos deles, a maioria, são farsantes; mas outros têm poderes reais e, o que é curioso, costumam dissimular esses poderes sob a aparência de certo charlatanismo, para melhor dominarem o mundo que os rodeia”.

Como fica claro por esta passagem estamos no reino das mais furiosas conjecturas, essas que não se deixam atrapalhar, mas se alimentam das inconsistências. Mas esta forma de paranóia aguerrida não é encerra uma mera curiosidade de feira, nem um desses cativantes perfis que se descobrem amiúde nos manicómios. Tal como nas hierarquias dos anjos, nas dos loucos há diferenças capazes de nos fazer ver como mesmo no paraíso se tecem intrigas infernais. Assim, no tumultuoso reflexo do mundo que emerge através das ilações deste personagem, percebemos o que quis dizer Michaux, quando escreveu: “O louco ouve outro tic-tac”.

Longe de ser uma razão caótica, ou meramente perturbada, percebemos como a demência não prescinde das suas leis. Muitas vezes, arquitectas num sistema de tal modo fino e complexo que fdá origem ao negativo de uma fantasia, algo que é vivido como uma acosso. (“Esta feroz lucidez que agora sinto é uma espécie de farol, e posso aproveitar um intensíssimo feixe que ilumina vastas regiões da minha memória: vejo caras, ratos num celeiro, ruas de Buenos Aires ou Argel, prostitutas e marinheiros; desloco o feixe e vejo coisas mais distantes: uma fonte na casa de campo, uma sesta abafadiça, pássaros e olhos que perfuro com um prego” – lê-se logo no parágrafo inicial.) Porque inventa as leis com a mesma intensidade com que se lhes submete, o louco vive de forma tão mais aguda a impotência e revolta face a elas. E se comparado com ele o fora-da-lei não passa de um gestor de pequenas desordens, um praticante de desacatos inconsequentes. A representação do mundo no tumulto interior do louco é bem mais arriscada. Ali, é-se ao mesmo tempo deus criador e o mais insignificante parasita. É-se sacudido de um extremo ao outro, num movimento que pode ir do júbilo ao pavor em instantes. Neste processo, como num acelerador de partículas ao nível da interioridade, descortinam-se falhas, as dúvidas agigantam-se, erguem-se cenários que tornam palpáveis esses terrores nocturnos através dos quais o demónio faz a sua entrada em cena, como alguém que vê uma possibilidade genial, mas não no plano original, antes numa versão ligeiramente distorcida.

Sabato era doutorado em Física, e foi isso que o levou a iniciar uma carreira de investigação no prestigiado laboratório Curie, em Paris. Antes de deixar o seu país, tinha já tomado parte nos protestos contra a manipulação das forças militares, mas o contacto com vários elementos do grupo surrealista, e em particular a influência de Breton, levou-o a dar-se conta de que não seria a ciência a determinar a condição do homem no século XX: “durante esse período tão conturbado, dava por mim a levarntar-me todas as manhãs para me sepultar entre electrómetros e tubos de ensaio, para, horas depois, anoitecer em bares à boleia dos delirantes surrealistas”, contou Sabato.

A literatura surgiu assim em função de uma outra verdade, uma necessidade de seguir as pistas para territórios fora dos mapas, e a ficção impõe-se como uma região “para além de todos os espelhos”, permitindo saber onde nos levam esses outros que há em nós, todas essas figuras que se fazem excomungar à luz da decência e dos nossos valores morais, mas que, por isso mesmo, se libertam para dar caça a essas “visões que me representam nos detalhes e nos excessos, muitas vezes indignas e verdadeiramente detestáveis mas que igualmente me traíram, indo além do que a minha consciência me consente”. Como recorda António Cabrita no excelente posfácio que assina nesta edição, em “El Escritor y sus Fantasmas”, ensaio publicado dois anos depois de “Heróis e Túmulos”, que “a tarefa central da novelística é a indagação do Mal. O homem real existe desde a queda. Não existe sem o Demónio: Deus não basta.”

De resto, é significativo como Sabato põe na boca de Fernando Vidal Olmos algumas das mais penetrantes análises dessas limitações auto-impostas que levam a que tantos escritores não se distingam de “aldrabões de baixo nível”, e faça com que outros, na sua adesão às brisas da boa consciência, se limitem a criar simulacros que possam corresponder e patrocinar valores positivos, tornando-se “ladinos fiscais da moralidade e barrando o caminho que conduz às verdades da noite” (Claudio Magris). Assim, Sabato insurge-se repudiando a representação do mundo que o cinge a uma linha a giz no asfalto, segundo as “devidas proporções”. “Sempre me fez rir a falta de imaginação desses senhores que julgam que para descobrir uma qualquer verdade é necessário dar aos factos ‘as devidas proporções’. Esses anões imaginam (também eles têm imaginação, claro, mas uma imaginação anã) que a realidade não ultrapassa a sua própria altura, nem é mais complexa que o cérebro de uma mosca. Esses indivíduos que a si mesmos se classificam de ‘realistas’, porque não são capazes de ver para lá dos seus próprios narizes, confundindo a Realidade com um Círculo-de-Dois-Metros-de-Diâmetro com centro na sua modesta cabeça. (…) Como se alguma vez na história da humanidade tivesse acontecido algo de importante que não tivesse sido um exagero, do Império Romano a Dostoievski.”

A loucura, em certo sentido, é uma forma de levar a literatura à letra. Escrevê-la com o próprio sangue. Deixar-se seduzir pelas personagens mais ferozes que o nosso intelecto, com todo o embalo das nossas experiências e traumas, foi capaz de conceber. E assim, como nos lembra o já citado Magris, vale a pena lembrar que no seu “Elogio da Loucura”, Erasmo de Roterdão não celebrava “as pulsões irracionais nem os delírios totalitários das ideias absolutas, mas sim a autêntica razão, ou seja a plenitude da compreensão, que inclui os conceitos, os sentimentos e as paixões”. Acrescenta ainda que “essa razão opõe-se quer à irracionalidade visceral, quer ao mesquinho cálculo falsamente realista, que considera imutável a realidade do momento e se sujeita a ela”. E remata notando que “a verdadeira razão, que não se rende às coisas, é sempre ‘loucura’ aos olhos de quem cede ao mal, tendo-o por inevitável”.