José Sócrates diz que não tinha medo de andar com dez mil euros em dinheiro sempre que ia de férias. O ex-primeiro-ministro respondeu assim ao juiz Ivo Rosa depois de ter dito no último interrogatório que a sua mãe lhe dava esse valor quando ia de férias. “Senhor juiz, eu pedia o dinheiro à minha mãe. Quem é que tem medo de andar com 10 mil euros nas férias?”, respondeu, quando questionado se não tinha receio de ser roubado ou de perder o dinheiro.
Foi nos últimos dias de interrogatório, no início deste mês, que o magistrado do Tribunal Central de Instrução Criminal confrontou o ex-primeiro-ministro com as avultadas quantias pagas pelo seu amigo Carlos Santos Silva relativas às viagens de férias. Sócrates contestou que fosse o amigo a pagar tudo, revelando um alegado cofre na casa da mãe onde esta guardava a sua herança – um dado que até hoje nunca havia sido comunicado pelo ex-governante.
“Eu ia de férias e pedia dinheiro à minha mãe. Eu sempre beneficiei do apoio da minha mãe para isto e para muitas outras coisas. Foi ela que me comprou a casa, o carro, que me deu dinheiro para isto e para aquilo”, afirmou Sócrates, adiantando que o seu amigo de longa data Carlos Santos Silva tinha conhecimento da sua dependência económica em relação à progenitora: “Desde os anos 80 que ele sabia que a minha mãe me financiava. O engenheiro Santos Silva também é amigo da minha mãe”.
Sócrates disse ainda que tinha noção de que Santos Silva, que considera um homem “honestíssimo”, tinha posses: “Acho que ele tinha possibilidades para isto e para muito mais. Eu tinha a ideia de que ele era um homem rico”.
O antigo governante disse ainda que era ele, por seu turno, que custeava as despesas durante as férias, como as refeições, tanto suas como do amigo. E fazia-o, garante, com o dinheiro que a mãe lhe dava.
“Eu nasci na Covilhã, quem nasceu na Covilhã faz esqui” No último dia, o juiz focou numa viagem em concreto, a passagem de ano de 2008 para 2009 em Veneza, a que não correspondem quaisquer movimentos nas contas de Sócrates. Aliás, o magistrado lembra que o saldo bancário nem sequer era compatível com os 45 mil euros gastos naquela viagem de família.
“Esta foi a viagem que nós fizemos, o engenheiro Carlos Santos Silva era para ir mas, por razões de que não me recordo, não foi. Depois, quando vim, pedi-lhe para que pagasse a viagem porque não tinha condições. Esta viagem não foi paga durante anos porque, sempre que íamos fazer contas, o Carlos Santos Silva dizia que tínhamos tempo. Mas foi esta viagem que incluí na lista de dívidas que tinha. Foi paga depois de ter sido preso”, disse Sócrates, explicando: “Era uma viagem para fazer esqui”.
Visivelmente irritado, Sócrates terá mesmo pedido desculpa ao juiz pelo tom que usou: “Peço desculpa do meu tom, não considere o meu tom com outra justificação que não seja o sentir-me humilhado por ter de responder a esses detalhes, mas sinto que o senhor tem o dever de fazer essas perguntas”.
Ainda assim, justifica porque decidiu ir de férias mesmo sem ter dinheiro na conta: “Eu decidi fazer essa viagem porque faço esqui desde os meus 12 anos. Eu nasci na Covilhã e quem nasceu na Covilhã faz esqui porque tínhamos ali a Serra da Estrela…”
E clarificou que se não pedisse a Carlos Santos Silva, teria pedido financiamento junto do seu banco: “Fiz o que metade dos portugueses fazem quando não têm dinheiro para as férias. Financiam-se”.
O juiz Ivo Rosa também insistiu sobre como é que o dinheiro que estava no cofre não se esgotava e como foi lá parar, tendo Sócrates justificado com a herança recebida com a morte do avô: “A minha mãe sempre teve muito dinheiro naquele cofre. E tinha também um cofre no BPI”.
Sócrates garante que só a partir de 2013 é que Santos Silva começou a fazer-lhe empréstimos. E contou que, entre o segundo semestre de 2011 e 2014, gastou em média 22 mil euros por mês, não 30 mil, como defende a acusação, concordando que os 12 500 euros que ganhava da Octapharma a partir de 2013 não eram suficientes para o pagamento das suas despesas mensais.
Perante o juiz Ivo Rosa, deixou claro que a tese de que teve uma vida de luxo em Paris não passa de uma “fantasia”. E mesmo a decisão de ir para França tem justificações: afastar-se da vida política, estudar fora do país e promover a educação dos seus filhos numa escola internacional. Sócrates diz, aliás, que já antes das eleições tinha pensado em ir para Paris estudar: “Eu já sabia que ia perder as eleições”. E acrescentou que se não tivesse esses planos, não lhe faltaria trabalho em Portugal e a ganhar 20 mil euros.
Sobre o facto de não viajar em classe económica, Sócrates dispara: “Porque é que eu viajava em executiva? Por uma única razão – eu gostaria até de viajar num regime mais barato –, porque tinha respeito por mim, por quem eu fui e pelo lugar que ocupei. Faço-o por consideração à dignidade do cargo que ocupei. Pode não valer nada para outras pessoas, mas para mim vale”.
Sócrates não sabia da participação da PT no BES José Sócrates sabia que a Portugal Telecom tinha dois acionistas de referência, o BES e a CGD, mas desconhecia qualquer participação da telefónica portuguesa no banco liderado por Ricardo Salgado. Foi isso que o antigo governante disse a Ivo Rosa no primeiro dia de interrogatório, afirmando mesmo estar a receber do juiz, pela primeira vez, tal informação. “Não fazia a mínima ideia”, começou por dizer Sócrates, reiterando tal desconhecimento depois de uma insistência do magistrado: “Nem sabia até este momento, estou a sabê-lo agora pela voz do senhor juiz”.
O ex-primeiro-ministro, interrogado entre 28 de outubro e 4 de novembro no Tribunal Central de Instrução Criminal, começou por elencar todos os encontros que teve com Ricardo Salgado, garantindo que nunca se falou sobre a questão da OPA fracassada da Sonae: “Todos conheciam no mercado a posição do Governo, era de abstenção”.
“Conheci-o em 2001, quando pediu uma audiência ao Ministério do Ambiente. Depois, nunca mais o vi até ser primeiro-ministro. Desde que tomei posse estive com o dr. Ricardo Salgado umas dez vezes. […] Doze vezes em seis anos”, disse a Ivo Rosa, acrescentando: “Nunca fui próximo de Ricardo Salgado”.
O ex-primeiro-ministro explicou também que, naquele processo, a única coisa que importava ao seu Executivo era que a rede de cobre e de cabo passassem a ser separadas: “O plano tecnológico dependia muito disso”. O antigo primeiro-ministro explicou ainda que, apesar de estar acusado de se deixar corromper para beneficiar os interesses de Salgado, o seu Governo sempre se preocupou em “acabar com o monopólio da PT, porque isso era um obstáculo ao desenvolvimento do mercado das telecomunicações”. Quanto a pressões, apontou o dedo a Paulo de Azevedo que, na sua versão, um dia lhe ligou a pedir uma cunha na CGD para que a OPA avançasse: “Senhor primeiro-ministro, tenho de lhe pedir isto porque não vamos conseguir se a CGD não votar a favor”.
No interrogatório, José Sócrates fala do seu amigo Carlos Santos Silva como um homem “honestíssimo” e descarta qualquer ligação pessoal à casa de Paris onde viveu.