Entrelinhas. De Saramago  a Freud,  as caricaturas de António

Entrelinhas. De Saramago a Freud, as caricaturas de António


Até 4 de dezembro, o Cinema Europa acolhe Entrelinhas, uma exposição do cartoonista António, com caricaturas de personalidades da literatura.


De José Saramago a António Lobo Antunes, de Mário Cesariny a Tennessee Williams, são várias as caricaturas penduradas na Biblioteca do Espaço Cultural Cinema Europa, em Campo de Ourique (Lisboa). Em comum têm o facto de retratarem gente cuja escrita deixou uma marca na literatura e, claro, terem sido desenhados pela mão do mesmo mestre – o cartoonista António Moreira Antunes, que assina e é conhecido apenas pelo seu primeiro nome: António.

A exposição de nome Entrelinhas, que pode ser visitada neste espaço até 4 de dezembro, é um jogo com a ambivalência desta palavra, que remete para os cadernos que se usavam nas escolas para aprender a escrever e os significados subentendidos que se leem “entrelinhas”.

“Esta exposição é filha de outra que esteve na casa do Camilo Castelo Branco”, explicou o cartoonista ao i, referindo-se à exposição que aconteceu, em 2007, na casa-museu que fica em Vila Nova de Famalicão. “Obedece aos mesmos requisitos da outra, era uma exposição dedicada a escritores, não só romancistas ou poetas, mas também a alguns que se dedicaram à escrita, como o Freud”.

A maioria dos trabalhos expostos vem do século passado, sendo a caricatura mais antiga a de Ary dos Santos (de 1984, ano em que faleceu) e as mais recentes as de Eça de Queiroz (2000, ano que marcou o centenário da sua morte) e José Saramago, que figura duas vezes na exposição, com uma caricatura de 1992 e outra de 2002 (ano em que foi editado O Homem Duplicado).

Para uma geração mais jovem, alguns destes escritores podem não ser facilmente identificáveis sem a ajuda da legenda que figura por baixo do quadro. Por exemplo, o quadro de António Lobo Antunes (1988), com um cabelo negro e pestanas que parecem inspirados na personagem Alex do filme Laranja Mecânica, bastante afastado da figura que muitos associam ao escritor hoje em dia.

Questionado sobre se as caricaturas ainda se mantêm atuais, António acredita que estas “personagens incontornáveis da literatura” continuam a ressoar pelos tempos. “Como desenhador evoluí, mas assumo aquilo que fiz. Evidentemente que o Eça de Queiroz ou o Saramago não morreram. Esses escritores, cujos nomes são extremamente importantes, não morreram, continuam a fazer parte do nosso imaginário e da literatura nacional e internacional”.

 

“Não há razão para haver controvérsia nesta exposição”

Um tema incontornável na conversa com o cartoonista foi o facto de o cartoon que fez para o jornal norte-americano The New York Times, onde desenhou o Presidente dos EUA, Donald Trump, com uma quipá e óculos escuros, a ser conduzido por um cão-guia com a cara de Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro israelita, ter sido censurado, levando inclusive ao fim dos cartoons no jornal e a acusações de antissemitismo ao desenhador.

António demarca esta exposição de quaisquer contornos políticos. “Eu tinha material para responder a esse pedido, mas neste caso pediram-me escritores e foi o que eu lhes dei”.

Numa altura em que o politicamente correto é uma das expressões de ordem, perguntámos a António se achava que alguém poderia sentir-se ofendido com as suas caricaturas. “Penso que não. Quer dizer, alguém pode sentir-se molestado pelas caricaturas, mas este [o das caricaturas] não é palco para isso, é mais respeitoso, pelo menos do meu ponto de vista”. Por oposição, apontou os cartoons como uma modalidade diferente. “O cartoon é diferente, tem algo que eu não procuro, a unanimidade. O cartoon é excessivo, é provocatório. A única coisa que me preocupa no cartoon é ser justificável jornalisticamente. E é com base nesses pressupostos que funciono”.

António iniciou a sua carreira como cartoonista no jornal República, a 16 de março de 1974. Com tantos anos de experiencia no currículo, quem melhor para avaliar o futuro desta modalidade, que considera “não ser muito promissor”? “Há jornais que fecham as portas, há cartoonistas que foram para o desemprego, há a censura em alguns jornais, há um mau pagamento noutros, há todo um conjunto de fatores que não pressagiam nada de bom”, diz o cartoonista, que todas as semanas vê os seus cartoons serem publicados no Expresso e que já colaborou com jornais como o Diário de Notícias, A Capital, A Vida Mundial e O Jornal, assim como com outros meios de comunicação internacionais.

“O nosso futuro está ligado ao futuro da imprensa, e nós somos um parceiro pobre da imprensa. Há muitos jornais que vivem sem cartoons – o seu, por exemplo. Eu acho que se o cartoon desaparecer, desaparece uma modalidade que sempre foi extremamente importante e que marcou momentos decisivos do século passado e, se perdermos isso, é um retrocesso. Nós [cartoonistas] temos um caminho, que é continuar a fazer o melhor que sabemos”.

Apesar desta perspetiva, o desenhador, melhor que ninguém, compreende o poder do seu trabalho. “[Este formato] é forte porque é subversivo. Repare, quando critiquei a União Soviética fui considerado pró-fascista, já fui herege quando critiquei a Igreja Católica, sou antissemita quando critico os judeus. Isto vai andando, eu vou sempre ser alguma coisa. Agora, aquilo que sou, que não sou nada dessas coisas, é um tipo com uma capacidade crítica para analisar as coisas que vão acontecendo. É isso que eu quero ser”.

E o futuro, por que linhas se escreve? “Estou à procura de fazer bons cartoons sobre a realidade que me envolve. Se isso implicar ter mais problemas, não posso fazer grande coisa em relação a isso. Mas não estou à procura de problemas, estou à procura de fazer grandes cartoons”.