O Estado não pode falhar


Há uma degradação silenciosa em curso. Algumas das infraestruturas mais importantes do país estão em profunda agonia. É uma tragédia em câmara lenta.


Relembramos por estes dias o primeiro aniversário sobre a tragédia de Borba. Pontes que caem, estradas que abatem, terra que arde sem fim. As vidas que se perderam em cada uma destas catástrofes sinalizam o lado mais negro de um país que se diz europeu, moderno e civilizado.

Temos olhado muito para o colapso do Estado social. A educação, a saúde, a segurança pública. Em cada uma destas áreas há problemas graves. Gritantes. Mas como tratam direta ou indiretamente com pessoas, esses problemas falam de tempos a tempos. Têm poder de reivindicação e de marcação de agenda.

Há, porém, uma outra degradação silenciosa em curso. Algumas das infraestruturas mais importantes do país, vias de comunicação que sustentam a liberdade e a mobilidade de milhares de cidadãos todos os dias, estão em profunda agonia. Os fundamentos do nosso país estão em erosão. É uma tragédia em câmara lenta.

Cascais é um concelho metropolitano. Está no litoral do país. É um dos centros demográficos, turísticos e culturais do país. E, todavia, é um concelho que está a lidar com problemas infraestruturais gravíssimos que ultrapassam, e muito, as competências municipais. Pergunta legítima: se o diagnóstico é este num território com massa crítica e tão próximo dos centros de decisão da capital, como será a situação no Portugal mais profundo?

Vem isto a propósito de uma decisão que tive de tomar na passada segunda-feira. Estava no meu gabinete a despachar processos quando, subitamente, sou confrontado com um alerta da Proteção Civil e dos departamentos de Ambiente e Obras: o muro de contenção da Avenida Marginal apresentava sinais de degradação preocupantes. Um relatório, com suporte fotográfico, mostrava várias crateras com cinco metros de largura e quatro metros de profundidade, reproduzindo-se ao longo de mais de 300 metros entre São Pedro do Estoril e a Parede. Algumas delas na prumada da estrada. Nenhuma foto precisava de legenda. Todas falavam por si mesmas. O risco para pessoas e bens era explícito e objetivo.

A Câmara de Cascais, a Infraestruturas de Portugal e a Agência Portuguesa do Ambiente vinham, desde 2016, a monitorizar o muro de contenção da mítica Estrada Nacional 6. Sempre houve consenso entre as partes de que uma obra de grande envergadura tinha de ser feita. Mas nenhum dos sinais era suficientemente preocupante para exigir ação imediata.

Isso mudou nos últimos dias. Com o agravamento do estado do mar, o paredão começou a ceder. Com as previsões meteorológicas adversas, prevê-se que possa ceder ainda mais.

Mesmo tratando-se de um troço de estrada nacional na alçada do poder central, sustentado nos pareceres da Proteção Civil e dos engenheiros municipais decidi suprimir o trânsito na faixa da direita (sentido Cascais-Lisboa), entre São Pedro e Parede, ao final do dia.

Tive a consciência clara de que um pequeno incómodo causado hoje num troço onde circulam 20 mil carros por dia podia evitar uma tragédia amanhã.

Ao mesmo tempo, e sem olhar a responsabilidades ou passa-culpas, pedi às equipas para trabalharem em duas soluções: uma de curto prazo, outra de longo prazo.

A intervenção de contenção urgente, se tudo correr bem e o tempo o permitir, arranca já hoje. Em quatro a cinco dias, a Marginal será totalmente reaberta.

O trabalho de longo prazo, feito em coordenação com a Infraestruturas de Portugal e a Agência Portuguesa do Ambiente, exige cumprimento de disposições legais demoradas e um investimento de 2 milhões de euros. Será cumprido mais à frente.

A Câmara de Cascais suportará financeiramente ambas as intervenções. Pergunta-se: mas porquê, se a estrada não é de responsabilidade municipal? Esta é a pergunta típica do país do passa-culpas que, entretido a apontar o dedo, se esqueceu de proteger os seus cidadãos. Sabemos como acaba esta história, pois são tantas as situações tristemente documentadas.

A esta pergunta devolve-se uma outra: de que serve saber de quem é a responsabilidade se, afinal, houver a lamentar perda de vidas e bens?

Cascais decidiu avançar para a obra por essa razão simples: não interessa se é Estado local ou central, não interessa se é a entidade A ou B, o que interessa é que as pessoas e a sua segurança são sempre da responsabilidade do poder político de turno.

Além do mais, a resposta do poder local é sempre a mais ágil e pronta, e a estrada nacional não serve apenas Cascais: serve a região metropolitana mais vasta em que nos inserimos.

Portugal será certamente um país melhor quando deixar de ser administrado em função dos pequenos poderes.

O Governo, a Infraestruturas de Portugal e a Agência Portuguesa do Ambiente sabem que contam com a Câmara de Cascais como parceiro. A Câmara de Cascais espera apenas reciprocidade no tratamento.

Mais do que saber quem fez o quê, como no caso da Marginal, o que interessa sublinhar é que um problema grave, de risco potencial elevado para as pessoas, foi detetado a tempo de ser corrigido. Sem lamentos, sem perdas, sem drama.

Em Cascais, o Estado funcionou. É o normal. Mas a normalidade também deve ser assinalada num país que, infelizmente, tão pouco tem tido dela.

Tudo porque o Estado não pode falhar.

 

Presidente da Câmara Municipal de Cascais

Escreve à quarta-feira


O Estado não pode falhar


Há uma degradação silenciosa em curso. Algumas das infraestruturas mais importantes do país estão em profunda agonia. É uma tragédia em câmara lenta.


Relembramos por estes dias o primeiro aniversário sobre a tragédia de Borba. Pontes que caem, estradas que abatem, terra que arde sem fim. As vidas que se perderam em cada uma destas catástrofes sinalizam o lado mais negro de um país que se diz europeu, moderno e civilizado.

Temos olhado muito para o colapso do Estado social. A educação, a saúde, a segurança pública. Em cada uma destas áreas há problemas graves. Gritantes. Mas como tratam direta ou indiretamente com pessoas, esses problemas falam de tempos a tempos. Têm poder de reivindicação e de marcação de agenda.

Há, porém, uma outra degradação silenciosa em curso. Algumas das infraestruturas mais importantes do país, vias de comunicação que sustentam a liberdade e a mobilidade de milhares de cidadãos todos os dias, estão em profunda agonia. Os fundamentos do nosso país estão em erosão. É uma tragédia em câmara lenta.

Cascais é um concelho metropolitano. Está no litoral do país. É um dos centros demográficos, turísticos e culturais do país. E, todavia, é um concelho que está a lidar com problemas infraestruturais gravíssimos que ultrapassam, e muito, as competências municipais. Pergunta legítima: se o diagnóstico é este num território com massa crítica e tão próximo dos centros de decisão da capital, como será a situação no Portugal mais profundo?

Vem isto a propósito de uma decisão que tive de tomar na passada segunda-feira. Estava no meu gabinete a despachar processos quando, subitamente, sou confrontado com um alerta da Proteção Civil e dos departamentos de Ambiente e Obras: o muro de contenção da Avenida Marginal apresentava sinais de degradação preocupantes. Um relatório, com suporte fotográfico, mostrava várias crateras com cinco metros de largura e quatro metros de profundidade, reproduzindo-se ao longo de mais de 300 metros entre São Pedro do Estoril e a Parede. Algumas delas na prumada da estrada. Nenhuma foto precisava de legenda. Todas falavam por si mesmas. O risco para pessoas e bens era explícito e objetivo.

A Câmara de Cascais, a Infraestruturas de Portugal e a Agência Portuguesa do Ambiente vinham, desde 2016, a monitorizar o muro de contenção da mítica Estrada Nacional 6. Sempre houve consenso entre as partes de que uma obra de grande envergadura tinha de ser feita. Mas nenhum dos sinais era suficientemente preocupante para exigir ação imediata.

Isso mudou nos últimos dias. Com o agravamento do estado do mar, o paredão começou a ceder. Com as previsões meteorológicas adversas, prevê-se que possa ceder ainda mais.

Mesmo tratando-se de um troço de estrada nacional na alçada do poder central, sustentado nos pareceres da Proteção Civil e dos engenheiros municipais decidi suprimir o trânsito na faixa da direita (sentido Cascais-Lisboa), entre São Pedro e Parede, ao final do dia.

Tive a consciência clara de que um pequeno incómodo causado hoje num troço onde circulam 20 mil carros por dia podia evitar uma tragédia amanhã.

Ao mesmo tempo, e sem olhar a responsabilidades ou passa-culpas, pedi às equipas para trabalharem em duas soluções: uma de curto prazo, outra de longo prazo.

A intervenção de contenção urgente, se tudo correr bem e o tempo o permitir, arranca já hoje. Em quatro a cinco dias, a Marginal será totalmente reaberta.

O trabalho de longo prazo, feito em coordenação com a Infraestruturas de Portugal e a Agência Portuguesa do Ambiente, exige cumprimento de disposições legais demoradas e um investimento de 2 milhões de euros. Será cumprido mais à frente.

A Câmara de Cascais suportará financeiramente ambas as intervenções. Pergunta-se: mas porquê, se a estrada não é de responsabilidade municipal? Esta é a pergunta típica do país do passa-culpas que, entretido a apontar o dedo, se esqueceu de proteger os seus cidadãos. Sabemos como acaba esta história, pois são tantas as situações tristemente documentadas.

A esta pergunta devolve-se uma outra: de que serve saber de quem é a responsabilidade se, afinal, houver a lamentar perda de vidas e bens?

Cascais decidiu avançar para a obra por essa razão simples: não interessa se é Estado local ou central, não interessa se é a entidade A ou B, o que interessa é que as pessoas e a sua segurança são sempre da responsabilidade do poder político de turno.

Além do mais, a resposta do poder local é sempre a mais ágil e pronta, e a estrada nacional não serve apenas Cascais: serve a região metropolitana mais vasta em que nos inserimos.

Portugal será certamente um país melhor quando deixar de ser administrado em função dos pequenos poderes.

O Governo, a Infraestruturas de Portugal e a Agência Portuguesa do Ambiente sabem que contam com a Câmara de Cascais como parceiro. A Câmara de Cascais espera apenas reciprocidade no tratamento.

Mais do que saber quem fez o quê, como no caso da Marginal, o que interessa sublinhar é que um problema grave, de risco potencial elevado para as pessoas, foi detetado a tempo de ser corrigido. Sem lamentos, sem perdas, sem drama.

Em Cascais, o Estado funcionou. É o normal. Mas a normalidade também deve ser assinalada num país que, infelizmente, tão pouco tem tido dela.

Tudo porque o Estado não pode falhar.

 

Presidente da Câmara Municipal de Cascais

Escreve à quarta-feira