Quando em 2017 Samantha Geimer apareceu em tribunal, em Los Angeles, a pedir ao juiz que pusesse uma pedra sobre o processo da sua alegada violação por Roman Polanski durante uma sessão fotográfica quando tinha apenas 13 anos na casa de Jack Nicholson, argumentou que o arrastamento do caso por décadas tinha já resultado numa “sentença de 40 anos” – tanto para ela quanto para o realizador de O Pianista (2002) e de A Semente do Diabo (1968). Geimer tinha então 54 anos, o caso, com toda a pressão mediática que colocou sobre ela, tinha-se arrastado por toda a sua vida: foi logo depois do episódio, ocorrido na casa de Jack Nicholson, então amigo do realizador, que, depois de um telefonema da sua mãe para a polícia, prestou as declarações que resultariam na acusação que acabaria por levar Polanski a no ano seguinte fugir dos Estados Unidos, aonde não mais voltou.
Mais de 40 anos depois, surge a fotógrafa Valentine Monnier a afirmar que esse caso que marcou de forma irremediável ao percurso do realizador que nem dez anos antes havia perdido a sua mulher, Sharon Tate, às mãos do grupo que, liderado por Charles Manson, espalhou o terror pela Hollywood do fim da década de 1960, não foi o primeiro do género envolvendo Polanski. Valentine Monnier é o seu nome. A dias da estreia nas salas francesas de An Officer and a Spy, o novo filme do realizador polaco, e aos 62 anos, Monnier resolveu partilhar aquela que diz ser a sua história com Polanski, através do diário francês Le Parisien, que a publicou.
“Em 1975, fui violada por Roman Polanski. Não tinha qualquer ligação com ele, nem profissional e conhecia-o vagamente das descrições da minha amiga”, diz Valentine Monnier, que no passado trabalhou também como modelo em Nova Iorque e como atriz em alguns filmes. Nesse ano, tinha aceitado o convite de uma amiga para passar umas férias de ski na Suíça, em casa de Polanski. “Foi de uma extrema violência, depois de um dia de ski, no seu chalé, em Gstaad [Suíça]. Ele bateu-me, bateu-me até eu me render e depois violou-me, submetendo-me a todas as vicissitudes. Eu tinha acabado de fazer 18 anos”.
Um alegado crime prescrito Polanski apressou-se, através de Hervé Temime, seu advogado, a negar estas novas acusações de que é alvo – e que de qualquer forma não serão investigadas, visto os crimes terem já prescrito tanto perante a justiça suíça como a francesa. A poucos dias da estreia do seu novo filme em 500 salas francesas, Polanski fez saber que está a ponderar processar o Parisien, que publicou a história que, na França que vem protegendo o realizador polaco desde que na década de 1970, na iminência de ser detido, fugiu dos Estados Unidos, já fez mossa. Jean Dujardin, protagonista de An Officer and a Spy, cancelou em cima da hora uma entrevista de promoção do filme que estava marcada para o canal francês TF1.
Segundo o artigo publicado pelo jornal francês que Polanski ameaça processar, o primeiro contacto de Monnier surgiu em meados de setembro passado. “Depois de 2017, encorajada pelo escândalo Weinstein, a Valentine contou a sua história em cartas enviadas à polícia de Los Angeles [onde continua pendente o caso ao qual Polanski vem escapando desde 1977], a Brigitte Macron [primeira-dama francesa], Franck Riester [ministro da Cultura] e Marlène Schiappa [secretária de Estado da Igualdade entre homens e mulheres do atual Governo francês]”, escreve a revista, que teve acesso às respostas recebidas pela fotógrafa de 62 anos.
Respostas essas que reproduziu, em parte. Schiappa, por exemplo, respondeu-lhe, segundo cita o Parisien, que “os factos estão atualmente prescritos para a justiça francesa” e que lhe é impossível “intervir em processos judiciais de um outro país” (no caso, a Suíça). “No entanto” – acrescentava à resposta a secretária de Estado francesa para a Igualdade – “desejo expressar o meu inteiro apoio ao seu corajoso passo”.
40 anos de silêncio O passo, diz Monnier ter começado a dar aí. O impulso final para o tornar público diz ser precisamente o novo filme de Polanski – ironicamente, em francês intitulado J’accuse (eu acuso). A onda de indignação gerada no início de setembro, precisamente, pela estreia desse mesmo filme no Festival de Cinema de Veneza não passou despercebida, com críticas à direção de Alberto Barbera não só por programar o filme de Polanski como American Skin, de Nate Parker, envolvido num escândalo de agressões sexuais. A verdade é que An Officer and a Spy, que tem já distribuição comercial assegurada em Portugal pela Midas Filmes, acabaria por vir a ser distinguido com o Leão de Prata do Grande Prémio do Júri, além de outras três distinções que incluíram o prémio FIPRESCI. Já antes disso, no outono de 2017, uma retrospetiva dedicada ao realizador polaco havia desencadeado protestos liderados pelas Femen em frente à Cinemateca Francesa.
Ao Parisien, Monnier explicou o seu silêncio por 44 anos com o estado de choque, ao qual se seguiu o instinto de sobrevivência. “O tempo de reação não pode ser esquecido. A violação é uma bomba relógio. A memória não se apaga, transforma-se num fantasma que nos persegue, que nos altera insidiosamente. O corpo acaba muitas vezes por retransmitir o que a mente reprimiu, até que a idade ou um acontecimento nos coloque diante da memória traumática”.
Esse acontecimento veio com este novo filme de Polanski, que chega às salas francesas esta semana com a história de Aldred Dreyfus, um oficial judeu da artilharia francesa, erradamente condenado no final do século XIX por traição num contestado processo que terminou com uma sentença de prisão perpétua na Ilha do Diabo, colónia penal que o Estado francês manteve até à década de 1940 na Guiana Francesa. E explica Monnier, de resto a primeira francesa que se insurge publicamente contra Roman Polanski com uma acusação de violação, traçando um paralelo da história que Polanski recupera e leva ao cinema e a sua própria biografia: “Será aceitável, sob o pretexto de um filme, sob o disfarce da História, ouvir dizer ‘eu acuso’ aquele que te marcou a ferro quando você, vítima, está impedida de o acusar?”.