Em Maio de 2017 escrevi neste jornal que a democracia norte-americana era demasiado forte para poder ser ameaçada por qualquer Presidente, por muito populista e irresponsável que o mesmo fosse. Defendi por isso que, a continuar Trump com a sua atitude habitual, poderia vir a ser destituído pelo Congresso, no âmbito de um processo de impeachment. Passaram mais de dois anos e Trump foi sobrevivendo a inúmeras decisões insustentáveis mas, desta vez, parece que não vai escapar ao processo de impeachment. A sua iniciativa de condicionar uma ajuda militar à Ucrânia à abertura por esse país de uma investigação a Joe Biden, seu principal adversário nas presidenciais de 2020, e ao seu filho, constitui um manifesto abuso de poder, absolutamente insustentável em qualquer país democrático. Existe por isso, claramente, base constitucional para o impeachment do Presidente. Trump bem pode aparecer diariamente com os seus tweets contra o processo, falando em caça às bruxas e exigindo a revelação do nome do denunciante, mas isso não vai afectar a decisão da Câmara dos Representantes de abrir o processo de impeachment.
Até agora, o processo tinha sido conduzido fora dos olhos do público mas, a partir deste momento, os depoimentos vão passar a ser públicos, o que pode danificar completamente a já debilitada presidência de Trump. É um facto que, mesmo que a Câmara dos Representantes aprove uma acusação contra Trump, este ainda terá de ser julgado pelo Senado, onde o Partido Republicano tem uma confortável maioria. No entanto, na América, a lealdade partidária não é decisiva para o voto dos senadores, pelo que, se a Câmara dos Representantes conseguir construir um caso forte contra o Presidente e convencer a opinião pública de que este efectivamente praticou um grave abuso de poder, será muito difícil o Senado recusar a sua destituição.
Na já longa história dos Estados Unidos, só houve dois processos de impeachment contra o Presidente. O primeiro abrangeu Andrew Johnson em 1868, acusado de ter violado uma lei aprovada pelo Congresso, mas este acabaria absolvido pelo Senado pela diferença de um voto. O segundo envolveu Bill Clinton, acusado pela Câmara dos Representantes, em Dezembro de 1998, de perjúrio e obstrução à justiça, em virtude das suas declarações sobre o escândalo Lewinsky, mas ele viria a ser absolvido pelo Senado em Fevereiro seguinte, por ampla maioria. Richard Nixon foi também objecto de um processo de impeachment depois do denominado Massacre de Sábado à Noite, em que destituiu os procuradores encarregados de investigar o Watergate, tendo o comité judiciário da Câmara dos Representantes proposto, em 30 de Julho de 1974, três acusações contra o Presidente, de obstrução à justiça, abuso de poder e desrespeito pelo Congresso. Nixon acabou, porém, por renunciar ao cargo em 9 de Agosto, o que levou o processo a ser encerrado sem que a Câmara aprovasse as referidas acusações.
Comparando estes precedentes com o caso que origina o impeachment de Trump, é manifesto que a acusação é muito mais grave do que as que levaram à instauração dos impeachments de Andrew Johnson e Bill Clinton, estando a um nível semelhante às apresentadas contra Richard Nixon. Mas Donald Trump não é Richard Nixon, pelo que não vai, naturalmente, renunciar ao cargo, continuando a produzir tweets furiosos contra os seus acusadores, a quem vai atribuir a responsabilidade de não o deixarem tornar a América grande de novo. Só que Trump já não está a apresentar o seu reality show The Apprentice, em que lhe bastava dizer “you’re fired” para se livrar de qualquer concorrente incómodo. Está ao leme do país mais poderoso do mundo, que possui umas instituições democráticas sólidas e onde o abuso de poder não é tolerado. Corre, por isso, o risco de ser o primeiro Presidente americano a ser, de facto, destituído pelo Congresso e de ser ele a ouvir o “you’re fired” para ser despedido da sua presidência.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990