Esta semana é a vez de abordar de forma evidentemente genérica o órgão de soberania Presidente da República no quadro de uma nova Organização do Poder Político dada por uma moderna Constituição da República Portuguesa que ponha fim ao actual regime de 1976 e abra um novo ciclo regimental e constitucional para o futuro.
Desde logo há uma pergunta que tem de ser feita e respondida quanto ao modelo que pretendemos ter em Portugal relativamente à forma de Governo, pois dessa decisão prévia resultará o quadro constitucional quanto aos poderes e respectivas competências do Presidente da República, bem como do próprio Governo.
Em democracia, existem três modelos possíveis quanto à forma de Governo. Parlamentarismo, Presidencialismo e Semipresidencialismo.
1 – No sistema Parlamentarista, temos o Reino Unido que é de todos o melhor exemplo em vigor deste modelo. Sendo um regime monárquico onde o monarca é por direito o Chefe de Estado soberano e simbólico, não possuindo qualquer poder político concreto que interfira directa ou indirectamente com o funcionamento das instituições políticas e democráticas, nem com a condução da política de facto praticada no país. Cabendo na íntegra ao Parlamento todo o poder político do Estado. Pelo que, o Governo é liderado por um Primeiro-Ministro oriundo de um dos partidos com assento parlamentar do qual depende exclusivamente para se formar e governar. Toda a accão política desenvolve-se no Parlamento, cujas maiorias absolutas são necessárias para que haja Governo, uma vez que este necessita do seu apoio e sustentação e perante o qual responde. Em regra, as legislaturas duram sempre até ao fim, podendo perfeitamente mudar o PM e todo o elenco do Governo durante a mesma legislatura. Bastará tão só que, por qualquer motivo de ordem interna, o partido político maioritário com responsabilidade governativa assim o entenda. Tudo se decide em eleições legislativas que têm lugar de quatro em quatro anos, das quais resulta a composição do Parlamento, designadamente pela eleição dos deputados de cada um dos partidos políticos na Câmara dos Comuns.
2 – No sistema Presidencialista temos como exemplo (entre outros) os Estados Unidos da América ou o Brasil em que o Presidente é simultaneamente Presidente da República e líder do Governo, cabendo-lhe portanto no quadro constitucional uma competência executiva para além de representativa do Estado. Para melhor ilustrar, é como se fosse dois em um, PR e PM ao mesmo tempo. Não existindo nestes regimes presidencialistas a figura do Primeiro-Ministro. Em suma, ao se votar no candidato presidencial por sufrágio universal que pode ser directo (caso do Brasil) ou indirecto (caso dos EUA), está-se a votar no Presidente da República e do Governo cujo restante elenco ministerial lhe caberá escolher e liderar durante o seu respectivo mandato. Neste sistema de Governo relativizam-se ou secundarizam-se os partidos políticos – sendo meramente instituições instrumentais ao funcionamento da democracia, em prol de uma maior importância individualista e de liderança atribuída aos candidatos eleitos. Ou seja, prevalece a personalidade dos líderes às próprias instituições partidárias.
3 – No sistema Semipresidencialista temos (entre outros) os casos de França e de Portugal. A esse respeito, convém explanar as características e diferenças entre ambos num enquadramento histórico ainda que de forma breve e sucinta.
Em França, historicamente o Primeiro-Ministro concentrava em si a maioria dos poderes políticos, enquanto o Presidente da República possuía apenas formalmente a titularidade do poder executivo. A IV República (iniciada no pós-guerra em 1946) traduziu-se num período de enorme instabilidade governativa, uma vez que não se conseguiam formar maiorias parlamentares consistentes – o que exigia necessariamente a constituição de governos de coligação entre partidos com profundas divergências ideológicas – sem que o PR pudesse intervir por não deter sequer o poder de dissolução do Parlamento. É neste contexto que o General Charles De Gaulle, regressado ao cargo de Primeiro-Ministro por escolha da Assembleia Nacional em 1958, lidera a redação de uma nova Constituição Política, com reforçados poderes presidenciais, a qual viria a ser referendada pelo voto popular que o torna, deste modo, o primeiro Presidente da V República Francesa. Após esta revisão da Constituição de 1958, passou a existir uma estrutura política executiva bicéfala, uma vez que, tanto o PR como o PM exercem funções políticas executivas no Governo, sendo talvez, a presidência do conselho de ministros e a representação e condução da política externa as mais notórias e importantes funções executivas do Governo de competência exclusiva do PR. Pelo que, podemos concluir que o semipresidencialismo francês é claramente de pendor presidencialista.
Em Portugal o sistema político e a forma de Governo aprovado pela Assembleia Constituinte de 1976 é, igualmente, semipresidencialista. Porém, no caso português, o poder executivo cabe exclusivamente ao Governo e não ao Presidente da República. Por maioria de razão, a presidência do conselho de ministros e a representação e condução da política externa são uma competência exclusiva do Governo. A própria exoneração do Primeiro-Ministro e do Governo apesar de ser constitucionalmente possível é bastante discutível quanto às razões para que possa ocorrer, uma vez que o PM e o Governo não respondem politicamente perante o PR desde a primeira revisão constitucional de 1982. Mesmo se tivermos em linha de conta o texto constitucional original da actual III República que vigorou entre 1976 e 1982 e que atribuía efectivamente maiores poderes ao PR, passando à frente todo aquele capítulo delirante do Conselho da Revolução – uma amálgama revolucionária desconexa e ultra soberana – que concentrava amplos poderes constitucionais numa espécie de governo militar com poderes legislativos e executivos próprios sem qualquer controlo nem dependência, juntamente com uma espécie de tribunal constitucional da revolução que se pronunciava por sua própria iniciativa independentemente de qualquer solicitação do PR e de forma vinculativa sobre todos os diplomas legais produzidos pelos outros órgãos de soberania e, apesar de presidido pelo PR, era também uma espécie de Conselho de Estado invertido, i.e., não um órgão consultivo do PR, mas sim um órgão directivo, atento, vigilante e disciplinar do próprio, o Presidente da República português não tem nem nunca teve desde 1976, ao contrario do francês a parir de 1958, competências constitucionais executivas de Governo.
Bem sei que neste momento alguns dos caros leitores da minha geração e mais novos, estarão certamente a questionar-se se esta história do Conselho da Revolução algum dia aconteceu ou se é o autor que enlouqueceu? Esclareço, recorrendo a uma frase muito utilizada por um grande amigo meu. “Há, de facto, verdades que parecem mentiras”.
Aqui chegados, confesso com total frontalidade e absoluta humildade intelectual que no caso do Presidente da República e da forma de Governo a adoptar no quadro de uma nova Constituição da República Portuguesa, não tenho certezas de qual o modelo que melhor nos serve no presente e servirá para o futuro, não esquecendo que o objectivo primeiro de uma reforma tão profunda do Estado e das suas instituições democráticas como esta que defendo de uma nova Organização do Poder Político é a credibilização política e institucional perante a sociedade aliada ao bom senso administrativo que reduza substancialmente os custos financeiros que sustentam a máquina do Estado e que o país pode suportar.
Sei apenas que o Parlamentarismo está completamente fora de questão. Aliás, o problema é maior hoje, precisamente porque o nosso sistema de Governo evoluiu excessivamente para um semipresidencialismo de pendor parlamentarista. E existe claramente um nexo causal identificável resultante de um acto de livre vontade política e consciente… Se é verdade que por um lado a revisão constitucional de 1982 foi absolutamente fundamental para pôr termo ao delírio revolucionário militar bolchevique do tipo cubano materializado no Conselho da Revolução e refazer o texto constitucional onde o ‘socialismo’ aparecia escrito de forma epidémica por todo o lado. É também verosímil – e há que dizê-lo sem subterfúgios e com todas as letras – que tal alteração constitucional teve, por outro lado, unicamente como fundamento retirar poderes constitucionais ao Presidente da República (àquele PR concreto em exercício do seu mandato Ramalho Eanes) e consequentemente aumentar os poderes consignados à Assembleia da República, dando maior autonomia ao Governo. Foi isto que em 1982 deliberadamente fizeram PS e PSD liderados respectivamente por Mário Soares e Francisco Pinto Balsemão. Pensaram apenas no imediato e neles próprios e não, como de resto é hábito, no país e nas instituições democráticas!
Posto isto, creio igualmente que manter o Semipresidencialismo como forma de Governo num novo quadro constitucional democrático e republicano só fará sentido se o Presidente da República tiver poderes de facto e num único mandato de 10 anos, por forma a nunca condicionar eleitoralmente a sua accão política do início ao fim do seu mandato. A reeleição presidencial é um acto eleitoral inútil que condiciona e enfraquece a acção do PR no primeiro mandato, pelo que deve ser abolida, trazendo uma poupança inestimável aos cofres do Estado. Todos os poderes constitucionais que vimos atrás devem ser atribuídos como já ocorreu entre 1976 e 1982 – inadvertida e irresponsavelmente sonegados pelos dois principais partidos políticos do regime -, como ainda o poder executivo de representação e condução da política externa, liberando o Primeiro-Ministro dessas tarefas internacionais que consomem muito do seu tempo. Com esta alteração o PM, em vez se promover a cada instante para um qualquer cargo político numa ambiciosa carreira internacional, poderá então dedicar-se a tempo integral a Portugal e aos portugueses, onde tanto, mas tanto há para se fazer!
Jurista.