Um país a discutir saias

Um país a discutir saias


A saia usada pelo assessor parlamentar do Livre deu início a um debate público sobre o que os homens devem ou não vestir. O i ouviu Rafael Esteves Martins, um historiador e um designer para melhor contar a história das saias, das convenções e da desformalização no modo de vestir.


No princípio, era a saia – ou a túnica, que em vários casos, como o do kilt escocês, acabou por perder a parte superior com o passar do tempo. Isso mesmo fez questão de lembrar a Câmara de Lisboa,no Twitter, a propósito da polémica gerada pela indumentária do assessor de Joacine Katar Moreira, eleita pelo Livre no dia em que a acompanhou à Assembleia da República, para a sessão inaugural do novo parlamento: “Homens de saias? Temos. Desde tempos imemoriais”. A ilustrar o tweet, uma fotografia da estátua de D. Afonso Henriques do Jardim do Campo Grande. Uma obra em que, apesar de tudo, a “saia”, escondida por um enorme escudo, não se faz notar tanto, muito menos com tanta pompa, como naquela em que Eduardo Malta o pintou para a Exposição do Mundo Português, inaugurada pelo Estado Novo em 1940.

Logo no dia, a própria deputada contou a história da saia de Rafael Esteves Martins ao i: “O Rafael perguntou-me se me importava que de vez em quando vestisse uma saia e eu disse: ‘Não. E vais vestir a saia na tomada de posse’”. Ao Diário de Notícias, que questionou o assessor parlamentar do Livre sobre o que o levou a vestir uma saia, Rafael Esteves Martins respondeu apenas que não comentava as suas “escolhas individuais” que estavam “dentro da lei”. Entre os que celebraram a opção e os que acusaram tanto o assessor como o partido de procurarem chamar a atenção pelo choque, uma saia – a entrada no Parlamento de um homem de saia – acabou por virar assunto nacional.

Não é a primeira vez, e o mais certo é que não venha a ser a última. Quando, já lá vão dez anos, Kanye West vestiu um kilt da Givenchy, adivinhou por antecipação a pergunta que aí vinha: “O que é que ele tem vestido?” A resposta estava pronta: “Houve guerreiros que mataram pessoas em kilts no passado. Quem é que decide o que é duro e o que não é?” Já este ano, depois de se ter apresentado nos Óscares com um smoking que terminava em vestido de Christian Sirian, também o ator e cantor Billy Porter se viu obrigado justificar-se. A Stephen Colbert, no seu Late Show, deu uma resposta que levava a discussão para a igualdade de género: “As mulheres usarem calças é um sinal de poder. Tem força, toda a gente aceita e não é associado ao patriarcado. [Mas] no minuto em que um homem põe um vestido, é repugnante. O que é que estamos a dizer com isto? Que os homens são fortes e as mulheres repugnantes? Não volto a sujeitar-me a isso. Se me apetecer usar um vestido, vou usá-lo”.

Quando os homens podem menos Num mundo que continua dominado por homens, foram afinal as mulheres as que primeiro se libertaram das convenções relativas ao vestuário. Desde a revolução de Coco Chanel que a partir da década de 1920 começaram a apropriar-se de peças de vestuário até então masculinas. Chanel não só usava calças (de homem, inicialmente) como passou a desenhar calças para mulheres, até que se tornaram uma peça de vestuário feminina. “Foi sempre assim”, diz ao i Paulo Morais Alexandre, professor na Escola Superior de Teatro e Cinema especialista em história do vestuário. “Há aqui uma coisa muito curiosa e para a compreender temos de voltar muito atrás: à Revolução Industrial, que é quando o homem deixa de se vestir quase como um pavão e passa a vestir-se de uma maneira muito formal. É a grande renúncia masculina, como lhe chamou [o filósofo e sociólogo francês Gilles] Lipovetski. Acho que essa grande renúncia masculina só começa a perder-se já no final do século XX. A mulher liberta-se muito mais cedo”.

Quando as calças eram dos bárbaros Daí que o vestuário feminino não esteja, nas suas palavras, “tão codificado” como o masculino. “É permitida alguma liberdade, em Portugal sobretudo depois do 25 de Abril, com o abandono da gravata, depois contrariado quando volta a haver uma formalização do vestuário”. Uma formalização consolidada pelo cavaquismo. “Só hoje é que a coisa se vai libertando”. Também em 1999, com a entrada no parlamento do Bloco de Esquerda, com Francisco Louçã e Luís Fazenda, chamou a atenção o facto de não usarem gravata. E a verdade é que, muito antes, no pós-25 de Abril, já deputados como Acácio Barreiros, da UDP, tinham recusado o uso da gravata. A prova de que, também na moda e nas suas convenções, a História se faz em círculos – e revoluções.

E isto leva-nos de volta ao princípio, àquele em que os homens usavam saias, como explica Paulo Morais Alexandre: “Os homens começam por usar saias, começaram por usar túnicas. Se formos a Mesopotâmia, ao Antigo Egito, etc., não encontramos roupa bifurcada. O vestuário civilizado é durante muito tempo associado às túnicas e às togas. As calças só aparecem com os nómadas e os bárbaros”. Que usavam calças porque andavam a cavalo. “Foi assim até à época dos romanos, em que chegou a haver pena de morte para quem usasse calções”. Porquê? “Porque as calças eram associadas ao inimigo, aos bárbaros. Curiosamente, quem depois ganha a Europa e destrói o império são estes bárbaros, que andam de calças”.

Ainda assim, a túnica não desapareceu. Exemplo recorrente são os kilts escoceses, que a presença celta trouxe até à Península Ibérica, onde continua vivo não só na Galiza: é olhar para o que chega aos dias de hoje como o traje tradicional dos Pauliteiros de Miranda, de Trás-os-Montes. Mas o mesmo no contexto da Igreja. “Está tudo chocado com isto e não se fala das pessoas que andam em Lisboa, muitos homens que andam de túnica. Basicamente toda a comunidade muçulmana que se veste de forma tradicional anda de túnica. Basta irmos à Rua do Benformoso ou à Mesquita, no Bairro Azul, à sexta-feira. Aí já não causa escândalo nenhum os homens andarem de saias”.

Desde Jean-Paul Gaultier Resumir-se-á tudo a uma questão de convenção, quebrada há muito no mundo da moda. No último ano, multiplicaram-se pelas revistas e sites de moda textos sobre como talvez 2019 fosse o ano em que os homens abraçariam por fim a saia. Quando, em 1996, Miguel Flor desenhou a sua primeira coleção, com a qual venceu o Sangue Novo, da Moda Lisboa, replicou o modelo de uma saia de polícia das Honduras. “Um amigo meu tinha ido às Honduras e tinha trazido uma e eu repliquei o modelo e usei-o. Enquanto designer, e na marca Miguel Flor, desenhei sempre saias para homem. Uma das primeiras pessoas a fazê-lo foi uma das pessoas que mais me influenciaram para ser designer: o Jean-Paul Gaultier. Em todo o seu percurso foram sempre muito características as saias para homem”.

Sobre saias e estátuas, Miguel Flor recorda como vestiu ele próprio, para o Porto Capital Europeia da Cultura 2001, uma do Infante D. Henrique com um vestido branco, numa intervenção comissariada por Paulo Cunha e Silva. Não o D. Afonso Henriques a que a Câmara de Lisboa agora recorreu para lembrar que não é de hoje que os homens usam saias, mas quase. Sobre a polémica em torno da saia de Rafael Esteves Martins, diz apenas que “não deveria ser um assunto”. “Em termos de design de moda e para quem pensa em vestuário, não só na moda, mas no vestuário, a saia num guarda-fatos de homem faz completamente sentido. Porque não?”, questiona o designer e ainda diretor da revista de moda Prinçipal. “Há homens que vão buscar saias a coleções femininas porque, comercialmente, não faz muito sentido [a aposta das marcas], porque as pessoas não estão preparadas”.

Para Miguel Flor, usar saia ou calções é mais ou menos o mesmo. “Mostra-se as pernas. Mostrar as pernas tem o mesmo caráter para os homens como tem para as mulheres. É muito confortável andar de saia, ando muitas vezes de calções muito largos, que sou conhecido por usar até no inverno. Saias já usei nalguns eventos, já usei na rua, já usei para sair. Tomo-o sempre um bocadinho como uma ocasião especial. Nunca fui trabalhar de saia, mas também porque nunca me apeteceu”.

Uma forma de produzir discurso Ainda que na Assembleia da República não tivesse entrado até aqui um homem de saia, também na política as convenções que por décadas determinaram uma certa forma de vestir vêm sendo quebradas. “Temos vindo objetivamente a assistir a uma informalização do vestuário [em contextos políticos]. É óbvio que em ditaduras isso não acontece. Só significa que vivemos em liberdade”, diz ainda Paulo Morais Alexandre, que dá o exemplo dos deputados do Podemos, em Espanha: “São republicanos e por isso não respeitam minimamente qualquer protocolo de indumentária para ir ter com o rei. E se for preciso, vão de calções”.

Porque o que se veste também diz muita coisa: “Há uma parte representativa, uma parte psicológica, uma parte sociológica, mas também há obviamente uma parte que é comunicação. O que este assessor fez foi comunicar”. Sobre isso mesmo falava ontem Rafael Esteves Martins ao i: “Muito embora a roupa produza um discurso, porque quando olho para os deputados do CDS, aquele tipo de vestimenta está a produzir um statement sobre classe, acho estranho que se dê tanta atenção a isto. Acho muito mais preocupante haver urgências pediátricas fechadas do que um assessor, que é um assessor, não representa ninguém, usar uma saia”. Para o assessor parlamentar do Livre, que até aqui era leitor de Língua, Literatura e Cultura Portuguesas na Universidade de Oxford, onde diz que o facto de usar ocasionalmente saias nunca foi um problema, nem sequer assunto. “Em Londres e em Oxford, uma bolha progressista, isto não é assunto”. Para o assessor parlamentar do Livre, a ideia de que um homem não pode usar uma saia, uma peça “associada ao género feminino” não é mais do que uma manifestação de misoginia.