Eis uma notícia arrepiante, capaz de deixar qualquer português de boa cepa, da estirpe de um Jacinto de Tormes, tão aflito que não aguentaria de comichões no sangue: “Vai faltar vinho em Lisboa!” Os velhotes que se juntavam nas tabernas da Rua das Portas de Santo Antão devem ter estremecido de alto a baixo dos seus alicerces de bebedolas e soltado uma grosa de palavrões. E ninguém ficou indiferente. Ninguém! Nesse ano de 1946, ii Guerra a perder-se num horizonte magoado, o vinho era mais do que necessário, era fundamental. Fazia parte da idiossincrasia do povo. Portugal sem vinho era muito menos português.
Facto: os armazenistas viam escassear as suas reservas. Outro facto, subsequente: os retalhistas não encontravam forma de se reabastecerem. Conclusão: já havia bodegueiros a racionar o tinto e o branco, o que fazia desesperar os clientes.
Reunião de emergência na Junta Nacional dos Vinhos! Um dos armazenistas mais antigos, mais respeitado, daqueles que já tinham convivido com tonéis incontáveis, pediu a palavra e questionou o presidente da junta, o dr. Mário Oliveira, sobre o drama que estavam a viver: “Diga-nos o que se passa, por favor! Temos de retomar os fornecimentos com urgência!”
Os armazenistas estavam organizados em grémio. Por sua vez, os retalhistas desconfiavam que os armazenistas estavam a entrar no caminho do açambarcamento e que, daí, passariam à especulação dos preços. Pelo que ameaçavam com uma queixa às autoridades fiscalizadoras. O assunto era confuso. Havia proprietários de tascos que sentiam que não haveria outra solução senão fechar portas, temporariamente que fosse.
O presidente da Junta Nacional dos Vinhos explicou-se como pôde. Que as vindimas se tinham atrasado, que a produção, além de tardia, era escassa, que ainda não havia um conhecimento preciso das quantidades disponíveis para distribuição, que o próprio ministro da Economia estava ciente da crise e se mantinha diariamente atento ao desenrolar dos acontecimentos.
São Martinho
Dia 11 de novembro aproximava-se a olhos vistos, o São Martinho sempre foi dia de escorropichar vinhaça e água-pé, com castanhas à mistura, alguns dos taberneiros tinham comprado as adegas disponíveis, outros estavam de mãos a abanar, havia uma clara desigualdade e, ainda por cima, os preços andavam à solta como os pombos da cidade, com lavradores a aproveitarem para praticar valores acima da tabela, abusando do desespero de alguns, funcionando à margem do controlo do mercado. Ninguém sabia ao certo o valor do vinho, essa é que era essa. E cabia à junta regular a matéria.
Bem prometia o dr. Oliveira que tudo ficaria resolvido antes do dia 11. Ninguém confiava. A reunião começou a transformar-se num salsifré. Uns falavam por cima dos outros. As vozes alteravam-se a cada momento. Era o vinho! Era o vinho! Nanja que os armazenistas estivessem pianchos, era o que faltava, se tivessem um litro que fosse disponível, escolheriam vendê-lo e não bebê-lo, mas não escondiam uma efetiva aflição.
Ah! O vinho! O vinho que merece gritos de alegria como no Pátio das Cantigas quando um trapalhão, ao pregar algo numa parede, fura uma das pipas do Evaristo, o droguista: “É vinho!!! É vinho!!!” O grito anunciava um milagre. O vinho que merece a poesia do escritor que percebia mais de aguardentes: “Não só vinho, mas nele o olvido, deito/ Na taça: serei ledo, porque a dita/ É ignara. Quem, lembrando/ Ou prevendo, sorrira?/ Dos brutos, não a vida, senão a alma/ Consigamos, pensando; recolhidos/ No impalpável destino/ Que não ‘spera nem lembra/ Com mão mortal elevo à mortal boca/ Em frágil taça o passageiro vinho/ Baços os olhos feitos/ Para deixar de ver”. Vinho em ode e não em odre, pela pena de Ricardo Reis.
Na sala, apertada, o ambiente fervia. José Baptista, diretor do Grémio dos Armazenistas, levou a contenda para o lado pessoal e aporrinhou fortemente Mário Oliveira. Que um ano antes, exatamente, tinha ali estado contra a sua vontade, a vê-lo tomar posse, e que fora incapaz de aplaudir essa posse porque sentia que o novo responsável pela junta iria prejudicar francamente aqueles que da venda de vinho viviam. Foi mais longe. Confrontou o dr. Oliveira com a promessa feita, na tomada de posse, de que iria resolver o problema do fornecimento e facilitar os contactos comerciais entre produtores e armazenistas e, como se via, tinha sido tudo da boca para fora e estavam todos ali a assistir à falsidade de tal promessa.
Mário Oliveira espinafrou-se. Quando outro armazenista se queixou de que estava à beira de perder tudo o que tinha ganho em dez anos de trabalho árduo, tratou de reclamar a bondade do seu serviço. Afinal, conseguira que o Governo autorizasse a baixa da graduação do vinho dando, com isso, uma compensação aos armazenistas e permitindo-lhes maior margem de lucro no negócio. Depois fartou-se de vez e deu às de Vila Diogo. Eles que ficassem a falar sozinhos. A paciência esgotara-se.
Ainda assim, chegou-se a uma proposta de solução. Requisitaria a Junta Nacional dos Vinhos todo o vinho que estivesse na posse de pessoas não inscritas legalmente como negociantes do produto e vendê-lo-ia aos armazenistas ao preço fixo de 2$00 por litro, passando o preço ao público para 3$00 por litro. Era assim uma espécie de “o vinho a quem ele pertence!”, afastando de vez quaisquer tentativas de abertura de mercado. Nada de liberalismos! O vinho não estava para isso. E a medida teria foros de incontornável: quem se recusasse a entregar o vinho que tivesse em sua posse à Junta Nacional dos Vinhos seria esbulhado dele em nome do interesse nacional. A junta iria confiscá-lo para o tornar de consumo público.
Mário Oliveira já não estava na sala. Mas os armazenistas, depois desta proposta, sentiram-se apaziguados. Era o que faltava que andassem para aí uns beb’águas a venderem vinho!