Um dia  de sol para Woody Allen

Um dia de sol para Woody Allen


Ainda que continue a chover em Nova Iorque, pela Europa chega às salas Um Dia de Chuva em Nova Iorque. O novo filme de Woody Allen que os EUA não quiseram distribuir.


“Fiz tudo o que o movimento #MeToo adoraria conseguir”, titulava no mês passado a IndieWire, a propósito de uma entrevista não concecida à publicação de cinema norte-americana, mas à France24. Afinal, só por território europeu, asiático e sul-americano se fará a estreia em sala de Um Dia de Chuva em Nova Iorque, o mais recente filme de Woody Allen, que levou para a conversa o #MeToo num contexto: “Trabalhei com centenas de atrizes [e] nem uma delas se queixou alguma vez de mim, nem uma única queixa. Trabalhei com, dei trabalho a mulheres no topo das suas capacidades, todas as capacidades, ao longo de anos e sempre lhes pagámos o mesmo que aos homens. Fiz tudo o que o movimento #MeToo adoraria conseguir”.

Foi o tsunami levantado pelo movimento iniciado no outono de 2017 com uma série de denúncias de mulheres contra o poderoso produtor Harvey Weinstein, caído do seu pedestal como uma peça de dominó à qual se seguiram uma série de outras (Kevin Spacey, Louis C.K., Brett Ratner, James Toback foram apenas alguns), que arrastou Woody Allen de volta para o centro de uma polémica que tinha ficado na década de 1990: Dylan, a sua filha adotiva com Mia Farrow, que ao longo dos 25 anos pelos quais se arrastou o escândalo dos alegados abusos de que foi vítima apenas duas vezes falara publicamente sobre o assunto, concedeu, logo em janeiro de 2018, a sua primeira entrevista televisiva. A Gayle King, no This Morning, da CBS, mantinha as alegações que Mia Farrow havia tornado públicas na década de 1990, durante a batalha judicial com o realizador pela custódia da filha. “O que não compreendo” – dizia – “é como é que esta história louca sobre eu ter sido vítima de uma lavagem cerebral é mais credível do que eu ter sido abusada pelo meu pai”. Foi o suficiente para que uma série de atores e atrizes com os quais Woody Allen havia colaborado ao longo desses 25 anos começassem a fazer questão de se demarcar publicamente dele.

Greta Gerwig, David Krumholtz, Ellen Page, Griffin Newman, Joaquin Phoenix, Mira Sorvino, Rachel Brosnahan, Natalie Portman, Chloë Sevigny, a lista parecia interminável, e incluía até nomes como Timothée Chalamet ou Rebecca Hall, dois dos atores que integravam o elenco de um filme que, já rodado, estava ainda em fase de pós-produção. Com as suposições de que, com a nuvem negra que se formava sobre Woody Allen, Um Dia de Chuva em Nova Iorque pudesse não chegar a ver a luz do dia, a Amazon, produtora do filme, mantinha-se em silêncio. Mas, ainda que longe das salas norte-americanas, acabaria por fazer o seu caminho. Em Portugal, chegou ontem às salas.

E é como se, ao escrevê-lo, ainda num tempo que, olhado já desta era iniciada pelo #MeToo, era outro, Woody Allen tivesse adivinhado o que aí vinha. E, com o habitual sarcasmo, antecipado a resposta. É um dia, ou um fim de semana, de chuva este ao longo do qual se desenrola por uma hora e meia esta comédia, que vem suceder Café Society (2016). Com Ashleigh (Elle Fanning, de Neon Demon e Maléfica) e Gatsby (Timothée Chalamet, que ganhou reconhecimento internacional depois de Chama-me Pelo Teu Nome, de Luca Guadagnino), um casal de universitários que se julgam (e julgaremos, ainda que só de início) feitos um para o outro.

Ela, aspirante a jornalista, ainda no jornal da universidade, consegue uma entrevista com Roland Pollard (Liev Schreiber), o realizador de um ficcionado Winter Memories, o filme em que deram o primeiro beijo. E ele, acabado de ganhar 20 mil numa noite de jogo, vê aí o pretexto perfeito para, por um fim de semana, lhe apresentar Nova Iorque onde, já se adivinha, hão de se molhar, à chuva.

Houve a crítica que o descreveu como uma “comédia antiquada”. E pode até ser de uma certa nostalgia por um tempo que não será certamente o de hoje que, entre as elites de Nova Iorque e o que serão as de Tucson, no Arizona (onde cresceu Ashleigh), se alimenta Um Dia de Chuva em Nova Iorque. Podemos até duvidar sobre o tempo em que estamos (em que estão eles), podemos nem resistir ao impulso de, entre velhos cafés e gente ao piano, ir à procura das referências que certamente Woody Allen não terá esquecido para nos dizer que isto é hoje.

A verdade é que, mais cedo do que tarde, veremos que não é um iPhone ou um modelo de automóvel que nos dará essa certeza. É olharmos para Ashleigh quando se aventura nessa cruzada em que pode transformar-se um encontro para uma entrevista com um realizador a braços com uma crise criativa – ou de meia idade, escolha-se. E, depois de Roland, o seu argumentista, Ted Davidoff (Jude Law), e ainda Francisco Vega (Diego Luna), o presumível ator do momento, pelo menos para a imprensa cor de rosa. “Nunca tinha visto uma jornalista tão bonita”, dir-lhe-á um deles – como poderiam dizer todos – quando o que interessa será conversar sobre tudo, exceto sobre as perguntas que, caderno em riste, Ashleigh vai acabando por desistir de fazer.

Na entrevista citada de início, Woody Allen reivindicava ter, ao longo do seu meio século de carreira, feito aquilo a que o #MeToo aspira neste tempo em que a sua carreira esteve mais perto do fim do que nunca. Mas, com este retrato impiedoso, ainda que em registo cómico, do lugar para o qual a indústria do insiste em atirar a mulher, Um Dia de Chuva em Nova Iorque vai mais longe do que qualquer simples declaração de princípios. Para um lado e para o outro, é um olhar ao espelho, mais vezes desconfortável do que risível.

Mas fá-lo sem se resumir apenas a isso, ou não estivessem lá Shannon, a personagem interpretada por Selena Gomez, uma acompanhante ou a mãe de Gatsby (Cherry Jones) para acabar de fechar uma história sobre o que se encontra quando não se procura. Ou sobre o que se deixa para trás nos momentos em que, para seguir em frente, há que tomar outro rumo. Um novo rumo.

Sobre isso, é olhar para o que diz o cineasta perante a ausência do filme das salas americanas: “Para mim, o filme vai estrear por todo o mundo. Se as pessoas gostarem, talvez venha a ser lançado nos Estados Unidos […] Não podia importar-me menos. Nunca trabalhei em Hollywood, trabalhei sempre em Nova Iorque e não me preocupo com isso nem por um segundo. Se amanhã ninguém quiser financiar os meus filmes, ninguém financiar as minhas peças de teatro ou ninguém publicar os meus livros, vou continuar a levantar-me e a escrever, porque é o que faço. Vou sempre trabalhar. O que se passar comercialmente com isso é outro assunto”. Em Nova Iorque pode até continuar de chuva. Mas está aí o novo filme de Woody Allen.