De Branca de Neve, Claire terá muito pouco. Branca como neve, isso sim, e ameaçada por Maud (Isabelle Huppert), uma madrasta capaz do que for preciso para pôr fim à ameaça da sua beleza. Homens, haverá sete também, os sete Claire há de encontrar na aldeia onde se refugia depois de resgatada por um misterioso homem – que não é um príncipe. Esses ficaram lá atrás, nos contos, com a impossibilidade dos finais felizes “para sempre”. Em Marvin (2017), o seu último filme, Anne Fontaine contava a história de um jovem que fugia da sua família em busca do sonho de se tornar ator. De volta a Lou de Laâge, que protagonizara o anterior Agnus Dei – As Inocentes (2016), rodado na Polónia, a partir da história de um grupo de freiras violadas por soldados durante a ocupação nazi, a quem a realizadora luxemburguesa entrega desta vez Claire. Uma jovem à procura de uma liberdade que não se agarra como nos sonhos. A ela, não será preciso explicar que príncipes não existem. Em Branca como Neve, que chega amanhã às salas, encantada para Claire só mesmo a sua liberdade.
Porque decidiu regressar a este clássico da Branca de Neve?
Comecei pela ideia desta personagem: uma rapariga que vai à descoberta do desejo, da sua sensualidade. No início, havia esta ideia de uma personagem feminina que passava por experiências com homens diferentes, depois questionei-me sobre quantos homens: sete. Sete? “Isto faz-me lembrar alguma coisa, lembra-me o conto da Branca de Neve”. Então decidi fazer um casamento entre as duas coisas e construí o filme como um conto mas, claro, subvertendo-o. Não é o conto, porque no conto, como sabe, a Branca de Neve é uma dona de casa, uma personagem muito antiquada.
É interessante esta escolha de Isabelle Huppert para a vilã da história. Uma mulher mais velha que inveja a beleza de Claire, ainda num paralelo com a Branca de Neve, mas na figura de uma madrasta, quase como uma madrasta de Cinderela. Em qualquer dos casos, o princípio que serve de base à personagem mantém-se. Como chegou a estas duas atrizes?
Conheço muito bem a Isabelle Huppert, já tinha feito dois filmes com ela antes, e acho que se pensarmos numa personagem perversa, contraditória, porque ela também sofre, numa espécie de monstro, mas um monstro humano, pensamos na Isabelle Huppert. É a mais extraordinária atriz francesa na expressão de emoções com ambiguidade, com muitas camadas. A Lou de Laâge já tinha feito um filme comigo, Agnus Dei – As Inocentes, na Polónia. Quando pensei nela, não estava certa de que tivesse a liberdade necessária para as cenas de sexo, que no cinema não são uma coisa fácil, e então um dia perguntei-lhe se queria fazer uma experiência, para percebermos se conseguiria fazer essas cenas. A partir daí, começámos a trabalhar e foi tudo muito natural. Ela tem uma beleza muito pura, muito inocente, e era importante para a personagem que não achássemos que estava a manipular alguma coisa.
Para lá do que disse, a Isabelle Huppert carrega sempre um mistério que ajuda a construir essas ambiguidades.
Ela é como uma atriz japonesa: às vezes não se consegue mesmo perceber no que está a pensar. É um mistério e isso resulta nesta personagem. Deixa-nos a pensar sobre o que irá fazer, na cena da maçã, na cena em que dança com Claire, em que ficamos com a sensação de que está quase apaixonada pela enteada, mas a seguir já estamos a achar que quer destruí-la. Este tipo de violência ela expressa-a de uma forma muito subtil e inteligente. É brilhante e é perfeita para este papel, eu acho.
Esse é um trabalho que também fez com ela? Ou é algo que está lá naturalmente?
Não, dava-lhe apenas pequenas orientações. Mas nada de psicológico. Na cena em que dançam juntas, por exemplo, disse-lhe só para começar num modo sensual e para depois mudar para um outro registo. E ela faz o que faz no filme. Mas faz sozinha, faz por ela.
Mesmo quando entrou aqui a Branca de Neve, foi sempre claro que esta era uma história para ser contada neste tempo?
Sim, a Branca de Neve é só uma referência. Uma referência que toda a gente tem na memória, porque, nalgum ponto da nossa infância, todos ouvimos a história da Branca de Neve com os sete anões. A ideia foi jogar com isso apenas, mas a história foi sempre contemporânea.
Todos temos na memória ao mesmo tempo que muitos de nós criticamos, por ser altamente opressivo para a figura feminina. Mas a Anne Fontaine transformou-a numa história de libertação.
A Branca de Neve é uma personagem anti-feminista. Desfiz isso com uma personagem cujo objetivo não é ser uma dona de casa. Ela move-se pelo desejo. Não quer escolher alguém, quer ser livre. A Branca de Neve original…
Precisa de um homem que lhe resolva a vida.
De um príncipe. É o início dos grandes problemas, quando se procura por um príncipe. Nos contos, dizem-nos que vão ser felizes para sempre. Aquilo de que gosto nos contos é a metáfora para coisas muito importantes sobre a crueldade da vida. São universais, mas todos têm um ponto de vista diferente sobre eles. Algumas mulheres dizem “que horrível, esta mulher vive como uma prisioneira”.
Porque até aquela ideia de final feliz traz consigo uma nova forma de prisão.
Sim. E, aqui, esta “mulher má” é completamente louca. O que me interessou foi jogar com estes códigos para contar uma história engraçada, cool, uma história também sobre as recordações da juventude.
Vê este filme como uma comédia, de certa forma? Tinha isso em mente à medida que o foi construindo?
Uma forma de comédia, sim. Mas não uma comédia tradicional, nunca fiz uma. Para mim, a comédia não é algo leve, é profunda. Para mim, a comédia vem de uma forma de melancolia.