Morreu Jacques Chirac e consigo a Europa dos anos dourados


“A nossa história é a de uma nação da velha Europa que deu ao mundo moderno o essencial dos seus valores, que nunca cedeu quando estavam ameaçados, que soube fazer disso, património de cada um. Sobre estes valores fundámos o nosso prestígio, exaltámos a nossa unidade. Construímos o ideal de uma sociedade de liberdade, afirmando…


“A nossa história é a de uma nação da velha Europa que deu ao mundo moderno o essencial dos seus valores, que nunca cedeu quando estavam ameaçados, que soube fazer disso, património de cada um. Sobre estes valores fundámos o nosso prestígio, exaltámos a nossa unidade. Construímos o ideal de uma sociedade de liberdade, afirmando a dignidade e a responsabilidade dos seus membros.”

A frase pertence ao agora desaparecido presidente francês, sendo bem ilustrativa da dimensão intelectual de si próprio, da “sua” França e, da “sua” Europa. Internamente, (nunca esquecendo que França é historicamente o país do mundo que mais vezes ergueu ídolos políticos para depois os derrubar sempre que desiludiram a pátria) foi dos governantes que maior aceitação popular teve.

É verdade que os seus opositores lhe apontaram toda a vida, como negativa, a sua facilidade em mudar várias vezes de opinião sobre o mesmo assunto, tendo ficado famosa a alcunha de “Camaleão Bonaparte”. Admirador confesso do perfil de Chirac desde miúdo, esta característica, que por esses era entendida como um defeito ou falta de personalidade, foi sempre olhada por mim e por outros como um traço da sua superior inteligência quando comparado aos seus contemporâneos. Fazia desta capacidade uma força e não uma fraqueza. Exemplo disso, a sua inicial reprovação à entrada de Portugal no projecto europeu e, depois, mais tarde, ter-se rendido e tornado admirador confesso do nosso país e da importância que nele tínhamos. A sua presidência, quando coincidente com a de Jorge Sampaio, assim o atestou, tendo sido o momento de maior cumplicidade histórica entre as duas nações.

Hoje, poucos são os que mudam as suas opiniões. Mas só assim acontece porque pior que não saber falar não sabem sobretudo escutar. Não sabem primeiro recuar para depois vencer. Muitos não sabem sequer o que é ter uma opinião. Outros, a tê-la, nem sabem porque dela partilham.

Chirac sabia escutar e soube sempre o que era o seu país. Ao sabê-lo, compreendia com clareza que França não era para grunhos, que lá por terem uma opinião devessem ser insensíveis ao eco que ela criasse no povo. Essa capacidade, aliada a um superior intelecto, a uma finura fora do comum na sua relação com o povo e seus homólogos, bem como uma rara elegância nos gestos, modos e aparições que em muito ultrapassavam a teatralidade gaulesa, fizeram dele o político mais amado da sua República. Tanto assim é, quem nem o estranho processo em que se viu envolvido em 2007 melindrou o seu legado.

Foi o último presidente que contribuiu para que França fosse uma potência e a governou como tal, exigência que ao ser defraudada, igualmente nenhum francês perdoa. Daí para cá, Sarcozy, mas sobretudo Hollande e Macron, não passaram de meras anedotas políticas quando comparados a Chirac. O primeiro, por pinças, ainda lá segurou o romantismo francês. Os outros, nem isso.

Na cena internacional, facilmente galvanizava aquilo que de melhor sempre teve o projecto europeu. O verdadeiro projecto. Aquele em que como na frase que comecei por citar, consagrava que a liberdade não era libertinagem; que dignidade tinha como sinónimo responsabilidade; que direito tinha como contraponto dever; que o maior valor comum não era o euro mas o cidadão e, que só podia governar quem para isso tivesse competência, fazendo deste projecto, aquele que todos sonhavam integrar.

Várias foram as tomadas de posição de Chirac que colidiram com as modas emergentes. Destas, fica na História a forte oposição aos confrontos do Iraque em 2003, considerando que não existiam justificações para que os mesmos fossem travados. Os que o criticaram na espuma desses dias, tiveram posteriormente de assumir que tal posição se provou sábia, pela comprovação da inexistência das supostas armas de destruição maciça de Saddam Hussein.

Enquanto todos pareciam mendigar a Bush filho uma presença na guerra como se isso fosse o grande marco de uma vida, França mostrou fibra e que não embarcava em irresponsabilidades. Assim não fizeram, a exemplo, Tony Blair ou José Maria Aznar, acabando os dois por entrar em queda livre, logo após a cimeira das Lajes. Safou-se Durão Barroso, mas apenas pelo lugar que veio a ocupar na Comissão Europeia.

Se uma vez mais com atenção olharmos para o que daí em diante foram a França e a Europa, verificaremos um ponto comum: ambos definharam. Sempre que há uma França forte e lúcida, a Europa avança. Quando assim não acontece, deixando de haver o chamado eixo “franco-alemão” para uma regência de predominância alemã, tendem a aumentar os atropelos, as insensibilidades e os abusos, tudo entrando numa espiral negativa sem aparente solução.

Hoje, França, de potência mundial já só tem os galões, e a Europa, de união, as fronteiras. A morte de Chirac representa o fim de uma era. O desaparecimento da geração de ouro dos governantes que nos permitiram ser quem somos, desaparecendo aquele que a minha geração pôde conhecer como sendo o último grande Estadista. São pelo menos precisos, um novo Ronald Reagan, uma nova Margareth Thatcher, (que mesmo com o tradicional eurocepticismo britânico nunca colocou a ordem mundial em risco) um novo Helmut Kohl e um novo Jacques Chirac para que a França, o projecto europeu e o mundo, possam voltar a ser o que vinham sendo.

Numa época em que tanto se fala de nacionalismos e se enche a boca com disparatadas alarvidades, no dia em que eles aparecerem, toda esta corja actual evaporar-se-á. Sobretudo porque o nacionalismo não é o que uma vez mais todos grunhos de hoje dizem ser. Todos os governantes que antes citei eram nacionalistas. Eram nacionalistas porque amavam os seus países. Eram nacionalistas porque transformaram os seus países nas traves mestras da melhor fase que o mundo viveu.

Mas eram sobretudo nacionalistas, porque souberam que sê-lo não é pugnar pelo isolamento dos seus países face aos dos outros. Não afrontaram o vizinho como se isso fosse demonstrativo de virilidade patriótica. Não afrontaram o projecto europeu por dá cá aquela palha como se ficassem melhor sem ele. No mundo moderno, ser nacionalista tem de ser potenciar o que de melhor pode ter cada país e, depois, colocar tudo isso ao serviço do projecto comum.

Na cena internacional, todos os mencionados eram nacionalistas mas respeitavam de igual modo o nacionalismo dos outros. Na Europa dos tempos de Chirac, por outro lado, ser Europeu não era sermos todos iguais em tudo. Era sermos iguais, respeitando aquilo que de mais belo tem a vida: a diferença. E isto, porque os actores da cena política eram os mesmos, pelo que esta doutrina tanto se fazia sentir de cada país para com o projecto europeu, como em sentido contrário.

Utópico? Não é. Ao morrer Chirac, morre o último Estadista que o mundo moderno conheceu. Mas sei que na minha geração, em todos os países, há gente verdadeiramente capaz de liderar uma nova vaga para um novo renascer político. Agora para que isso aconteça, também todos nós cidadãos temos de dar o nosso contributo. Sobretudo com exigência e envolvimento. Um envolvimento lúcido e educado. Não em modo selvagem ou doentio como a Greta não sei das quantas. Isso é palhaçada e, para ver palhaços, se deles gostarmos, temos os circos.

Nos tempos de Chirac, os Costa´s, os Sánchez´s, os Macron´s, os Johnson´s, os Trump´s, ou nas oposições as Catarinas Martins, os Pablo´s Iglésias, as Le Pen´s, os Corbyn´s, os Salvini´s, entre outros, não seriam aproveitados nem para limpar o pó dos parlamentos onde hoje se sentam. Mas a culpa de lá se encontrarem não é só deles. É deles em última análise. Em primeira é nossa. De todos nós. Por deixarmos que lá cheguem. Uns por querer e outros por negligência.

Não basta criticar os políticos de hoje. Temos todos de nos criticar a nós próprios, na medida em que o tipo de governantes que exerce o poder está em tudo ligado ao tipo de sociedade que permite que eles lá cheguem. Falo para os da minha geração: dizem que somos a geração mais bem formada de sempre. Somos. Mas somos igualmente a geração mais acrítica que existiu.

Há muito a mudar. E como já referi, acredito fazer parte de uma geração onde há, mesmo que ainda não tenham aparecido, mais Jacques Chirac´s.

Rodrigo Alves Taxa

Morreu Jacques Chirac e consigo a Europa dos anos dourados


“A nossa história é a de uma nação da velha Europa que deu ao mundo moderno o essencial dos seus valores, que nunca cedeu quando estavam ameaçados, que soube fazer disso, património de cada um. Sobre estes valores fundámos o nosso prestígio, exaltámos a nossa unidade. Construímos o ideal de uma sociedade de liberdade, afirmando…


“A nossa história é a de uma nação da velha Europa que deu ao mundo moderno o essencial dos seus valores, que nunca cedeu quando estavam ameaçados, que soube fazer disso, património de cada um. Sobre estes valores fundámos o nosso prestígio, exaltámos a nossa unidade. Construímos o ideal de uma sociedade de liberdade, afirmando a dignidade e a responsabilidade dos seus membros.”

A frase pertence ao agora desaparecido presidente francês, sendo bem ilustrativa da dimensão intelectual de si próprio, da “sua” França e, da “sua” Europa. Internamente, (nunca esquecendo que França é historicamente o país do mundo que mais vezes ergueu ídolos políticos para depois os derrubar sempre que desiludiram a pátria) foi dos governantes que maior aceitação popular teve.

É verdade que os seus opositores lhe apontaram toda a vida, como negativa, a sua facilidade em mudar várias vezes de opinião sobre o mesmo assunto, tendo ficado famosa a alcunha de “Camaleão Bonaparte”. Admirador confesso do perfil de Chirac desde miúdo, esta característica, que por esses era entendida como um defeito ou falta de personalidade, foi sempre olhada por mim e por outros como um traço da sua superior inteligência quando comparado aos seus contemporâneos. Fazia desta capacidade uma força e não uma fraqueza. Exemplo disso, a sua inicial reprovação à entrada de Portugal no projecto europeu e, depois, mais tarde, ter-se rendido e tornado admirador confesso do nosso país e da importância que nele tínhamos. A sua presidência, quando coincidente com a de Jorge Sampaio, assim o atestou, tendo sido o momento de maior cumplicidade histórica entre as duas nações.

Hoje, poucos são os que mudam as suas opiniões. Mas só assim acontece porque pior que não saber falar não sabem sobretudo escutar. Não sabem primeiro recuar para depois vencer. Muitos não sabem sequer o que é ter uma opinião. Outros, a tê-la, nem sabem porque dela partilham.

Chirac sabia escutar e soube sempre o que era o seu país. Ao sabê-lo, compreendia com clareza que França não era para grunhos, que lá por terem uma opinião devessem ser insensíveis ao eco que ela criasse no povo. Essa capacidade, aliada a um superior intelecto, a uma finura fora do comum na sua relação com o povo e seus homólogos, bem como uma rara elegância nos gestos, modos e aparições que em muito ultrapassavam a teatralidade gaulesa, fizeram dele o político mais amado da sua República. Tanto assim é, quem nem o estranho processo em que se viu envolvido em 2007 melindrou o seu legado.

Foi o último presidente que contribuiu para que França fosse uma potência e a governou como tal, exigência que ao ser defraudada, igualmente nenhum francês perdoa. Daí para cá, Sarcozy, mas sobretudo Hollande e Macron, não passaram de meras anedotas políticas quando comparados a Chirac. O primeiro, por pinças, ainda lá segurou o romantismo francês. Os outros, nem isso.

Na cena internacional, facilmente galvanizava aquilo que de melhor sempre teve o projecto europeu. O verdadeiro projecto. Aquele em que como na frase que comecei por citar, consagrava que a liberdade não era libertinagem; que dignidade tinha como sinónimo responsabilidade; que direito tinha como contraponto dever; que o maior valor comum não era o euro mas o cidadão e, que só podia governar quem para isso tivesse competência, fazendo deste projecto, aquele que todos sonhavam integrar.

Várias foram as tomadas de posição de Chirac que colidiram com as modas emergentes. Destas, fica na História a forte oposição aos confrontos do Iraque em 2003, considerando que não existiam justificações para que os mesmos fossem travados. Os que o criticaram na espuma desses dias, tiveram posteriormente de assumir que tal posição se provou sábia, pela comprovação da inexistência das supostas armas de destruição maciça de Saddam Hussein.

Enquanto todos pareciam mendigar a Bush filho uma presença na guerra como se isso fosse o grande marco de uma vida, França mostrou fibra e que não embarcava em irresponsabilidades. Assim não fizeram, a exemplo, Tony Blair ou José Maria Aznar, acabando os dois por entrar em queda livre, logo após a cimeira das Lajes. Safou-se Durão Barroso, mas apenas pelo lugar que veio a ocupar na Comissão Europeia.

Se uma vez mais com atenção olharmos para o que daí em diante foram a França e a Europa, verificaremos um ponto comum: ambos definharam. Sempre que há uma França forte e lúcida, a Europa avança. Quando assim não acontece, deixando de haver o chamado eixo “franco-alemão” para uma regência de predominância alemã, tendem a aumentar os atropelos, as insensibilidades e os abusos, tudo entrando numa espiral negativa sem aparente solução.

Hoje, França, de potência mundial já só tem os galões, e a Europa, de união, as fronteiras. A morte de Chirac representa o fim de uma era. O desaparecimento da geração de ouro dos governantes que nos permitiram ser quem somos, desaparecendo aquele que a minha geração pôde conhecer como sendo o último grande Estadista. São pelo menos precisos, um novo Ronald Reagan, uma nova Margareth Thatcher, (que mesmo com o tradicional eurocepticismo britânico nunca colocou a ordem mundial em risco) um novo Helmut Kohl e um novo Jacques Chirac para que a França, o projecto europeu e o mundo, possam voltar a ser o que vinham sendo.

Numa época em que tanto se fala de nacionalismos e se enche a boca com disparatadas alarvidades, no dia em que eles aparecerem, toda esta corja actual evaporar-se-á. Sobretudo porque o nacionalismo não é o que uma vez mais todos grunhos de hoje dizem ser. Todos os governantes que antes citei eram nacionalistas. Eram nacionalistas porque amavam os seus países. Eram nacionalistas porque transformaram os seus países nas traves mestras da melhor fase que o mundo viveu.

Mas eram sobretudo nacionalistas, porque souberam que sê-lo não é pugnar pelo isolamento dos seus países face aos dos outros. Não afrontaram o vizinho como se isso fosse demonstrativo de virilidade patriótica. Não afrontaram o projecto europeu por dá cá aquela palha como se ficassem melhor sem ele. No mundo moderno, ser nacionalista tem de ser potenciar o que de melhor pode ter cada país e, depois, colocar tudo isso ao serviço do projecto comum.

Na cena internacional, todos os mencionados eram nacionalistas mas respeitavam de igual modo o nacionalismo dos outros. Na Europa dos tempos de Chirac, por outro lado, ser Europeu não era sermos todos iguais em tudo. Era sermos iguais, respeitando aquilo que de mais belo tem a vida: a diferença. E isto, porque os actores da cena política eram os mesmos, pelo que esta doutrina tanto se fazia sentir de cada país para com o projecto europeu, como em sentido contrário.

Utópico? Não é. Ao morrer Chirac, morre o último Estadista que o mundo moderno conheceu. Mas sei que na minha geração, em todos os países, há gente verdadeiramente capaz de liderar uma nova vaga para um novo renascer político. Agora para que isso aconteça, também todos nós cidadãos temos de dar o nosso contributo. Sobretudo com exigência e envolvimento. Um envolvimento lúcido e educado. Não em modo selvagem ou doentio como a Greta não sei das quantas. Isso é palhaçada e, para ver palhaços, se deles gostarmos, temos os circos.

Nos tempos de Chirac, os Costa´s, os Sánchez´s, os Macron´s, os Johnson´s, os Trump´s, ou nas oposições as Catarinas Martins, os Pablo´s Iglésias, as Le Pen´s, os Corbyn´s, os Salvini´s, entre outros, não seriam aproveitados nem para limpar o pó dos parlamentos onde hoje se sentam. Mas a culpa de lá se encontrarem não é só deles. É deles em última análise. Em primeira é nossa. De todos nós. Por deixarmos que lá cheguem. Uns por querer e outros por negligência.

Não basta criticar os políticos de hoje. Temos todos de nos criticar a nós próprios, na medida em que o tipo de governantes que exerce o poder está em tudo ligado ao tipo de sociedade que permite que eles lá cheguem. Falo para os da minha geração: dizem que somos a geração mais bem formada de sempre. Somos. Mas somos igualmente a geração mais acrítica que existiu.

Há muito a mudar. E como já referi, acredito fazer parte de uma geração onde há, mesmo que ainda não tenham aparecido, mais Jacques Chirac´s.

Rodrigo Alves Taxa