“Cais do Sodré, uma mulher”. Uma mulher morta, apanhada do rio, enrolada numa rede de pesca. “Saem dos bares completamente bêbadas e depois caem ao rio, como tordos.” Será? Estamos em Lisboa, Lisboa pela noite que dará o tom ao policial noir de Ivo M. Ferreira. E esta é uma história que há de partir daqui, do Cais do Sodré, em direção a Sul – ao outro lado do rio. Escrita entre Edgar Medina (produtor), Guilerme Mendonça e Rui Cardoso Martins, Sul, que chegou à RTP1 neste sábado (21h), marca a estreia de Ivo M. Ferreira, o realizador de Cartas da Guerra e de Hotel Império, na ficção televisiva.
E começa por aqui. Por Adriano Luz como Humberto, Jani Zhao como Alice, dois inspetores tentando chegar a algum lado num decrépito Volvo no momento em que são chamados para resolver o caso de uma misteriosa mulher que aparece morta no Tejo. Uma história de polícia num país tornado, ele próprio, um caso.
Não tardará que se descubra porquê, logo ao amanhecer, com o Tejo visto de cima: “Chega hoje a Portugal a equipa da troika que efetuará a oitava avaliação ao programa de assistência financeira ao país. Entretanto, dados revelados ontem pelo Instituto do Emprego apontam para o aumento do número de desempregados inscritos há mais de um ano na ordem dos 31,5%. Caros ouvintes, estamos a descer para Lisboa, façam o favor de apertar o cinto. O céu está limpo, tudo o resto está sujo”.
Será a esse país nesse tempo histórico recente a que regressaremos em Sul, que marcou também a estreia da ficção televisiva nacional nos grandes festivais de cinema: em fevereiro, com a exibição do primeiro episódio no Festival de Cinema de Berlim. O problema não serão então apenas uns corpos, uns crimes, mas todo um país mergulhado numa crise que, começam os jornais a vaticinar, não está tão longe de voltar quanto isso.
Àquilo em que ela se traduz depressa chegaremos – e logo daremos conta de que nem o sarcasmo nem o niilismo de Humberto – “Não acredita na vida eterna?”; “Tenho um bocado de dificuldade em acreditar na vida antes da morte” – vieram aqui parar por um mero propósito estético.
Explica Ivo M. Ferreira na sua nota de intenções que Sul é bem mais do que um policial negro (numa série de nove episódios) sobre “os incidentes dramáticos que lhe dão origem”; que se trata “afinal de captar o espírito de uma época, descobrir como personagens lidam com situações extremas e aprendem esta arte tão simples como difícil: a arte de viver em conjunto”.
Mas Sul vai ainda muito além disso. Num país em que se contam raros os exemplos de ficção televisiva que resulte para lá de uma tentativa de correr atrás do que nunca se alcança, de uma cópia tentada do que vem de fora em forma de êxito, desta que é a primeira série realizada por Ivo M. Ferreira dir-se-á com certezas que escapou incólume a esse defeito.
Ivo M. Ferreira cita Fritz Lang, John Houston, Truffaut, Ray, Mellville, Hitchcock, Polanski, Lynch, Nolan, cita ainda séries recentes como True Detective. A verdade é que, venham as referências que vierem, Sul é uma série portuguesa – por fim, um policial negro à boa maneira portuguesa. Entre a noite e a luz de Lisboa e do Sul do Tejo. Com Dead Combo a tomarem conta da banda sonora, com Afonso Pimentel, Margarida Vila-Nova, Adriano Carvalho, Nuno Lopes e Beatriz Batarda a juntarem-se a Adriano Luz, Jani Zhao e Ivo Canelas. A confundir-se esta trama, só se for com uma das que, na literatura, nos deu José Cardoso Pires.