Há uma incapacidade doentia para não conseguir afirmar um ponto de vista, a defesa de uma ideia, de uma instituição ou de um projeto, sem ser pelo ataque dramatizado, desqualificado ou insultuoso. Há uma incapacidade de aduzir factos e argumentos para sustentar a sua posição perante o outro ou quem pensa diferente. A proliferação de sinais de sectarismo e de intolerância está presente em quase todas as realidades que implicam interação entre diferenças, na política, no desporto e na sociedade, sendo uma preocupante epidemia social. Estamos a alimentar uma sociedade do insulto gratuito, meio tribal, meio intolerante e demasiado antidemocrática. Não qualificamos o pensamento e a ação, não geramos espaço de diálogo civilizado sem insulto e adensamos as condições para a emergência de uma cultura de intolerância e confronto. É claro que a quem se limita a replicar argumentos mais ou menos institucionalizados, num impulso tribal, pouco importa o próprio e o outro, o relevante é cumprir o papel social de megafone, mas é uma deriva preocupante. Sem exigência com as nossas realidades, com que autoridade cívica e democrática poderemos ser assertivos, rigorosos e minuciosos com os outros?
É certo que existe presunção de inocência, que a justiça deveria de investigar sem condenar previamente com violações do segredo de justiça e que são muitos os interesses que se expressam numa campanha eleitoral, mas é aceitável que um titular de cargo público tenha conhecimento de uma farsa ilegal, que dê conhecimento do conhecimento em mensagens com outro político e nada tenha feito para pôr cobro à situação? Há tribalismo que se possa sobrepor à gravidade da evidência não negada, aliás de um protagonista que nos tempos da ERC perguntou a um assessor de imprensa se falava com jornalistas? Não será intelectualmente insultuoso aceitar que um titular de cargo político tenha este comportamento, não desmentido por nenhum dos intervenientes, e que esforço empreendido tenha sido proclamar o “não assunto da coisa”?
Aos quarenta e cinco anos de Democracia, há permissividade com a intolerância e tolerância com a imposição das narrativas de grupo, mesmo que insultuosas, gratuitas e sem nexo com a realidade.
Andamos nisto na política e em outras manifestações da sociedade, em que os grupos de interesses projetam perspetivas tribais, não em função da afirmação das suas realidades, mas em destruição das perspetivas e projetos dos outros. O foco nunca é a afirmação positiva do contributo individual, comunitário ou do grupo de interesse. O foco é quase sempre a destruição, o insulto e a intolerância em relação ao outro, sem ter em conta o contributo social, económico e cultural do outro para o país. O drama é que a coberto da liberdade de expressão, quem deveria intervir para moderar o insulto gratuito, faz muito pouco, e este prolifera de forma epidémica, em Portugal e no mundo.
Quando jogo após jogo os benfiquistas são insultados por cânticos persistentes de claques, em casa, fora e quando nem sequer o Benfica é adversário direto, e a Liga e a Federação Portuguesa de Futebol fingem que não se passa nada, estão a alimentar a existência de fatores de promoção do ódio para os quais só despertarão quando existir uma catástrofe grave.
Quando a UEFA permite a existência de cânticos racistas num jogo a norte, documentados em áudio e audíveis na transmissão televisiva, como já tinha permitido faixas de ataque a outra instituição desportiva em competições europeias, está a proclamar que o insulto gratuito é tolerado pela organização do futebol europeu a alguns. Bem podem fazer campanhas “ No to racismo”, que nunca deixarão de ser ridículos e sem autoridade.
A política e o futebol são a fonte de muitas expressões desta sociedade do insulto gratuito em que Portugal se transformou. Se não houver um esforço de todos para mudar comportamentos individuais e comunitários, o mais certo é entrarmos numa escalada de intervenções insultuosas que acabarão em expressões radicais de intolerância. Podendo estar na órbita da esfera individual mudar, é preciso que quem tem poder regulador regule pelo exemplo e não pela complacência irresponsável.
Domingo 6 de outubro, é dia de votar, não em função do que nos dizem ou dos outros, mas da nossa avaliação sobre a sociedade que temos e a que queremos ter. Intolerância não é certamente um pilar que queremos para os quarentas e seis anos de Democracia e para os desafios que se colocam a Portugal na sustentabilidade das opções, no respeito pela diversidade e na construção de melhores condições de vida. Com ou sem insultos, se não quer que outros decidam, vote.
NOTAS FINAIS
EPIDERME – camada mais exterior da pele que vemos e tocamos – Em 2015, era para ganhar fácil depois do governo PSD/CDS e da troika, não se ganhou, mas, ainda os portugueses não tinham acabado de votar, solucionou-se. Em 2019, com condições únicas para uma maioria absoluta assente nos resultados alcançados e no que é preciso ser feito nos próximos anos, como será possível voltar a não cumprir o objetivo.
DERME – camada intermédia grossa, elástica mas firme da pele – Não há nenhum acontecimento da campanha eleitoral que fosse inesperado, o inexplicável é que não estivessem preparados para as ocorrências. A incompetência e os imprevistos programados são expectáveis.
SUBCUTÂNEA – camada mais interior da nossa pele armazena energia enquanto acolchoa e isola o corpo. Os resultados na Madeira confirmam que realidades consolidadas são difíceis de remover de supetão. É ir por fases, como em qualquer transformação.
Escreve à segunda-feira