Um deserto em Portugal? “Estamos a tempo de combater a desertificação”

Um deserto em Portugal? “Estamos a tempo de combater a desertificação”


O pior cenário, se nada fosse feito para conter as emissões de CO2, mostrou há uns anos que todo o sul do país poderia passar a ser um deserto. Autor alerta para a importância de o ambiente passar a estar no topo das prioridades. Hoje, 60% do território tem suscetibilidade moderada de desertificação, dos quais…


O mapa foi publicado em 2016 na revista Science: no pior cenário, em que nada fosse feito para conter as emissões de gases com efeito de estufa e o aquecimento global fosse além de 3 oC, no final do século, o sul da Península Ibérica teria passado a ser um deserto que se estenderia até Lisboa. A imagem ficou na cabeça, mas os impactos de um aumento de temperatura a esse ponto seriam catastróficos. O objetivo da comunidade científica e do Acordo de Paris é garantir que o aquecimento global não excede 2 oC, com cada vez maior pressão para que não vá além de 1,5 oC. Mesmo assim, haverá desafios à escala global e também em Portugal, com mais de metade do território com suscetibilidade moderada à desertificação.

Um relatório recente do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC na sigla em inglês) mostrou que o risco de desertificação tem estado a aumentar e que acaba por ser um círculo vicioso: por um lado, as alterações climáticas tenderão a exacerbar os processos de degradação do solo que têm, além das condições climáticas, uma componente ligada à atividade humana; por outro, o processo de desertificação contribui também para dificultar o combate às alterações climáticas devido às reduções na vegetação, com a absorção de carbono a diminuir.

Joel Guiot, o paleoclimatologista francês que há três anos publicou na revista Science o alerta de que as alterações climáticas poderiam transformar a paisagem do Mediterrâneo com uma crescente desertificação sem precedentes, alertando para importância de limitar o aquecimento a menos de 2 oC, mantém o apelo feito na altura. “É urgente limitar as emissões de CO2, uma vez que os efeitos nas populações e nos ecossistemas são maiores do que prevíamos”, disse ao i, em antevisão da Cimeira de Ação Climática desta segunda-feira, em Nova Iorque. “Precisamos de um novo paradigma em que o ambiente esteja no topo das prioridades. É muito mais caro corrigir os danos do que evitá-los. A prioridade de todos os Governos devia ser cumprir o acordo de Paris”. A nível global, estima-se que a população exposta a desertificação e a escassez de água atingirá os 178 milhões de habitantes num cenário de aquecimento global de 1,5 oC em 2050, subindo para 220 milhões se o aumento de temperatura chegar aos 2 oC. Ásia e África serão os continentes mais afetados, com o IPCC a prever um aumento do risco de incêndio florestal nos países asiáticos e que as regiões nos trópicos e subtrópicos serão as mais afetadas em termos de perda de produção de cereais e insegurança alimentar.

Unir competências Na Europa, Portugal surge há muito entre os países mais vulneráveis. Existe desde 2014 um novo Programa de Ação Nacional de Combate à Desertificação (PANCD) mas, no início deste mês, o Tribunal de Contas deu nota negativa à execução nos últimos anos. Os auditores consideraram que o diagnóstico foi o adequado; contudo, “não identificou as concretas ações a desenvolver, as entidades e as áreas de governação responsáveis pela sua execução, o respetivo calendário, o custo envolvido e a articulação com os programas/fundos suscetíveis de financiar as ações necessárias, não tendo uma verdadeira natureza de programa ou plano de ação”. O TdC recomendou então à Comissão Nacional de Coordenação de Combate à Desertificação e ao Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas que reforçassem os meios e, na resposta, o Governo garantiu que o programa foi revisto.

Maria de Belém Freitas, investigadora da Universidade do Algarve, membro do Centro de Competências na Luta contra a Desertificação, criado no ano passado e sediado em Alcoutim, diz que as preocupações em torno da desertificação são hoje maiores do que quando começou a trabalhar nesta área, há mais de 20 anos.

Se os passos ao longo do tempo foram “lentos”, acredita que hoje existe uma sensibilização maior para os riscos da degradação do solo. Explica antes do mais o conceito: “A desertificação é um processo de degradação do solo que deriva de vários fatores associados a características climáticas locais e que pode ser potenciado ou atenuado pela ação humana. É um fenómeno que se verifica em regiões áridas, semiáridas ou sub-húmidas e, no fundo, significa uma redução ou perda de produtividade biológica e económica das terras agrícolas, pastagens e florestas. Para além deste fenómeno biofísico, e porque está associado a formas de ocupação do solo, há muitas vezes uma associação entre a desertificação e o despovoamento. Embora não sejam semelhantes, quando há despovoamento é natural que aumente o risco de desertificação porque deixa de haver gestão da água e do solo e, por consequência, aumenta a exposição aos riscos”.

A investigadora assinala que, em Portugal, a irregularidade climática, que parece acentuar-se, e as condições socioeconómicas contribuíram para o atual cenário, em que cerca de 60% do território tem suscetibilidade moderada à desertificação e 11% um risco mais elevado, em particular no nordeste do Alentejo e do Algarve. E se as projeções não são boas, mantém o otimismo. “Estamos a tempo de tomar medidas e combater efetivamente o fenómeno da desertificação”, sublinha.

É nesse sentido que vê o trabalho do centro de competências, que acredita que poderá ajudar a delinear medidas eficientes na ocupação do solo, no combate à erosão e na gestão da água, partindo da evidência científica e da avaliação de projetos locais. “A gestão territorial é uma questão que tem múltiplos interessados: diz respeito aos utilizadores individuais, às empresas, à sociedade civil, investigadores, decisores locais. É importante que todos estes interessados assumam o compromisso de lutar contra a desertificação. Devemos promover formas de planeamento e gestão territorial eficientes de maneira que as políticas locais possam melhorar a sustentabilidade do uso do solo. O centro de competências tem a ver com isto, é um espaço de construção coletiva de conhecimento”, sublinha.

E que medidas são mais urgentes? A investigadora assinala que não existe uma solução universal e que, mesmo em relação aos receios em torno da exploração intensiva, não há conclusões definitivas, acreditando que parte da resposta ao problema passará por incentivos a uma agricultura sustentável e à fixação no interior. “Sempre que criamos condições para que os solos voltem a ser usados e para a instalação das pessoas, estamos a criar condições para combater o fenómeno”.

Para Maria de Belém Freitas, é isso que tem falhado e terá de melhorar daqui para a frente, além do combate de fundo às alterações climáticas. Apesar de o primeiro Programa de Ação Nacional de Combate à Desertificação ter sido criado em 1999, a preocupação tardou a fazer parte das políticas públicas de apoio à agricultura, assinala. “Só timidamente, no PRODER (2007-2014), e com mais acutilância no atual Programa de Desenvolvimento Rural (PDR 2020), a luta contra a desertificação passou a ser critério de elegibilidade em algumas medidas, correspondendo a um aumento da sensibilidade a esta problemática, embora os instrumentos de política agrícola se centrem sobretudo nas medidas florestais e agroambientais”, conclui.