A gloriosa “vitória” atribuída a Rui Rio por comentadores e jornalistas obviamente de direita no debate por eles considerado decisivo com António Costa, obrigou-me a recuar mais de meio século, até aos tempos em que a selecção portuguesa de futebol – ainda anterior ao Eusébio e à maravilhosa equipa do Benfica da década de 1960 – conseguia sempre obter gloriosas “vitórias morais”, sobretudo quando levava abadas de 8-0, 9-0 ou mesmo 10-0 de selecções estrangeiras, regra geral em jogos particulares. Sou do final desse tempo, ainda era um miúdo que gostava muito de jogar à bola (e já era do Sporting), mas lembro-me bem… À confraria de comentadores e jornalistas acima referidos (naturalmente ciosos das fontes que financiam os canais de TV privados e os jornais “de reverência” ao patronato) só terá faltado entoar, para encorajar o actual presidente do PPD-PSD, a famosa ária da ópera “Aida”, de Giuseppe Verdi, intitulada “Ritorna Vincitor!”.
Bem se percebeu que estavam todos perfeitamente concertados para proclamar a “vitória” de Rui Rio fosse qual fosse o resultado do debate. O mais curioso, porém, é que, durante o debate, Rui Rio não tirou um único coelho da cartola, nem disse nada que não tivesse já dito e repetido meses e meses a fio. Mas foi o que voltou a dizer, no mesmo estilo de sempre: às vezes impulsivo, quase sempre patético, às vezes a contradizer-se, quase sempre errático, percebendo-se que conhece mal ou não domina bem determinados assuntos. E tão hesitante! Mas – atenção, muita atenção! – tão “humanamente hesitante” que até parece um “homem comum”, uma espécie de “uomo qualunque” a condizer com a fachada social-democrata do PPD-PSD, todavia membro do partido da direita europeia: o PPE.
Tudo isso nos explicou minuciosamente, com a imodéstia que o caracteriza, bem do alto da sua cátedra na “Circulatura do Quadrado” (que horroroso nome, credo!), esse erudito “humanista” que é Pacheco Pereira, atribuindo a “vitória” no debate, pois pudera, ao seu velho amigo “tripeiro”, Rui Rio – ainda que no estilo de quem lança a um náufrago uma bóia de salvação. Abrupta e adventícia, a “sentença” de Pacheco Pereira combina às mil maravilhas com o nome do programa em que ele faz uso do verbo. Em suma: tudo aquilo que, até ao debate, era motivo de críticas acerbas, remoques desagradáveis e sarcasmos impiedosos contra Rui Rio, passou a ser, como que por encanto, transformado numa “goleada política” infligida pelo ‘David’ Rui Rio ao ‘Golias’ António Costa, forçado a morder o pó.
Problemas de António Costa: estudar e conhecer bem os dossiers da governação; “pensar política ao pequeno-almoço, ao almoço e ao jantar” (como salientou, num tom displicente, o supracitado “humanista”); ser um primeiro-ministro demasiado competente, cujo Governo já obteve resultados surpreendentemente positivos em domínios tão essenciais como a economia, as finanças, o emprego, a recuperação dos rendimentos dos trabalhadores, a qualidade de vida, a Saúde, a Educação, e, last but not least, a estabilidade política. E tudo isto, apesar da sucessão de greves quase quotidianas, das arremetidas sazonais de Marcelo PR e duma comunicação social claramente hostil, dominada por patrões e jornalistas de direita. Em todo o caso, devo dizer que foi a um jornalista do Expresso que ouvi fazer, num canal de TV privado, uma análise rigorosa e objectiva do debate. Não menciono o seu nome para não lhe causar engulhos. Mas foi uma flor no meio do entulho.
Achaques e maleitas próprias da idade, e também consequência duma vida vivida intensamente e com inevitáveis excessos, fizeram de mim, já há muito, um utente habitual, confiante e grato, do Serviço Nacional de Saúde. Há certamente críticas que podem e devem ser feitas ao seu funcionamento, até porque, tendo em conta a evolução vertiginosa da Ciência, em geral, e da Medicina, em particular, o SNS é e continuará a ser, inevitavelmente, a work in progress, ou seja: uma obra – aliás notável – sempre em construção. Por todas estas razões, fiquei espantado com o desplante com que uma jornalista de proa (que até é excelente apresentadora de telejornais) se dirigiu ao primeiro-ministro nestes precisos termos: “O senhor acha-se responsável pelo estado em que está o Serviço Nacional de Saúde?”.
Na frase “o estado em que está”, é evidente o preconceito, obviamente negativo. É a ideia de “caos no SNS”, persistentemente inculcada na opinião pública quer pelo actual bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, quer pela bastonária da Ordem dos Enfermeiros, Ana Rita Cavaco (militante do PPD-PSD que já disse de Rui Rio o que Mafoma nunca disse do toucinho). Mas já sabemos que Rui Rio e Assunção Cristas são chefes dos dois partidos que, há 40 anos, votaram contra a criação do SNS. Esta gente, que nunca foi social-democrata nem democrata-cristã, sempre tem privilegiado e defendido o “negócio da Saúde”, considerado “o mais rentável a seguir ao negócio das armas”, tal como disse quem sabe…
António Costa respondeu com factos e números iniludíveis à “retorcida” pergunta da jornalista que acima referi. Mas é preciso, um dia destes, começar a dizer aos jornalistas que não devem dar de barato as acusações sem fundamento, devendo analisá-las com rigor e sem preconceitos ideológicos. Todos sabemos, aliás, que os mais furiosos críticos do SNS são gente que deseja desmantelá-lo, não precisa de frequentá-lo e limita-se a usá-lo como arma de arremesso política.
Volto então ao início para concluir esta crónica: o presidente do PPD-PSD, Rui Rio, “venceu” o famoso debate com o secretário-geral do PS, António Costa, tal como o Benfica “venceu” o Leipzig (por 1-2); tal como o Sporting “venceu” o PSV (por 2-3); tal como o F.C.Porto “venceu” o Gil Vicente (por 1-3); ou tal como o Desportivo das Aves “venceu” o Vitória de Guimarães (por 1-5). Regressamos, pois, ao tempo das “vitórias morais”, quando a selecção levava grandes abadas. Só que, agora, trata-se duma “gloriosa vitória” forjada pela comunicação social que temos…
Escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990