Conhecimento tradicional e biopirataria


A partir do conhecimento da biodiversidade local e das suas aplicações, a ciência e a tecnologia desenvolveram muitos dos medicamentos mais importantes da farmácia moderna.


Todos os povos do mundo identificaram produtos naturais com propriedades valiosas ao longo da sua história. Medicamentos, setas venenosas ou alucinogénios rituais contam-se entre algumas das aplicações tradicionais mais comuns. Ainda hoje, uma fração importante da população mundial depende desses produtos, por exemplo para satisfação de necessidades médicas básicas. Este conhecimento da biodiversidade local e das suas aplicações, que constitui uma parte intrínseca da identidade cultural e espiritual dos povos, foi passado oralmente de geração em geração, registado em manuscritos antigos ou documentado por visitantes estrangeiros. E, a partir dele, a ciência e a tecnologia desenvolveram muitos dos medicamentos mais importantes da farmácia moderna. A História mostra no entanto que, na maioria dos casos, o papel do conhecimento indígena tradicional naquelas descobertas foi negligenciado e não compensado. Esta apropriação indevida que ainda perdura e que muitos denominam de “biopirataria” levou ao aparecimento de iniciativas que pretendem valorizar de forma justa a propriedade intelectual indígena.

O estudo da relação entre populações e plantas (i.e. etnobotânica) foi sempre uma fonte privilegiada para identificar plantas com potencial terapêutico. O valor do conhecimento indígena foi reconhecido, por exemplo, pelo naturalista Garcia de Orta que, ao publicar a obra Colóquio dos Simples e das Drogas no séc. xvi, se tornou o primeiro europeu a descrever ervas medicinais indianas. Muitos medicamentos importantes na farmacopeia ocidental, como o quinino ou a digoxina, foram descobertos estudando os usos terapêuticos tradicionais das plantas. E sabemos que dos 119 medicamentos ainda hoje extraídos de plantas, 74% foram identificados com base em estudos etnobotânicos [1].

A maioria dos medicamentos derivados de plantas foram descobertos no séc. xx, durante a época colonial. Conjugando o conhecimento tradicional com a ciência e as tecnologias modernas, empresas e instituições ocidentais desenvolveram medicamentos que trouxeram benefícios imensos às sociedades modernas e prosperidade financeira aos seus promotores. Já o papel significativo do conhecimento indígena tradicional naquelas descobertas foi essencialmente negligenciado e não compensado. Mesmo na época pós-colonial, surgiram amiúde casos dúbios de produtos valiosos desenvolvidos a partir de conhecimentos ancestrais sem compensação. A injustiça inerente a esta situação levou muitos a batizar a prática de “biopirataria” [2]. Um exemplo bem conhecido envolve o isolamento dos anticancerígenos vincristina e vimblastina de uma pequena planta de Madagáscar [1, 2].

O facto de muitos conhecimentos indígenas subsistirem apenas na tradição oral ou estarem registados em línguas obscuras facilita a sua apropriação por terceiros, que podem assim argumentar que as “suas” descobertas são novas, já que não se encontram registadas no “estado da arte”. Uma das medidas destinadas a garantir a proteção da propriedade intelectual indígena passa, por isso, por promover de forma ativa a sua divulgação em línguas francas. A biblioteca digital TKDL (http://www.tkdl.res.in/) constitui um excelente exemplo desta abordagem. A sua criação resultou da constatação de que milhares de patentes eram concedidas anualmente com base em sistemas de medicina tradicional indiana pela simples razão de que esse conhecimento existia apenas em línguas inacessíveis (e.g. sânscrito) aos revisores de patentes. O Governo indiano promoveu então um processo sistemático de tradução e estruturação da informação contida em textos antigos que resultou na disponibilização de cerca de 250 mil formulações medicinais em cinco línguas. À data, cerca de 200 pedidos de patentes foram invalidados graças a este esforço.

Muitos etnobotânicos são sensíveis à questão de como proteger a propriedade intelectual dos povos indígenas com quem trabalham. A descoberta do antiviral prostratina a partir de relatos de uma curandeira samoana de que a febre poderia ser tratada com um chá de casca da árvore mamala constitui um modelo de colaboração eticamente exemplar. Neste caso estabeleceu-se desde o início um acordo entre líderes locais e cientistas ocidentais que registou a importância de proporcionar benefícios aos povos indígenas mesmo antes de uma eventual comercialização bem-sucedida da prostratina [1]. Num âmbito mais global, esta preocupação com a propriedade intelectual indígena recolheu a unanimidade dos signatários da Convenção da Biodiversidade, assinada no Rio em 1992. De facto, embora os objetivos principais da convenção fossem a conservação e utilização sustentável da diversidade biológica e a partilha equitativa dos recursos genéticos, o conhecimento tradicional foi também objeto de um artigo específico.

Ao defenderem-se de acusações de biopirataria, muitos argumentam que o desenvolvimento de um medicamento envolve um esforço imenso e um know-how incomparavelmente superior ao conhecimento tradicional, que consideram marginal. Sendo certo que assim possa ser, o contraponto é que a probabilidade de identificar um novo fármaco através de um processo de prospeção aleatório (1/10 000) é incomparavelmente inferior quando comparado com uma pesquisa “etnodirigida” e informada pelas práticas tradicionais.

A apropriação do conhecimento tradicional na área da medicina através de patentes e direitos de propriedade intelectual sem uma compensação justa é considerada uma forma de pirataria. Na tradição colonial, a maioria das disputas opõem empresas de países tecnologicamente avançados do hemisfério norte e povos de países ricos em biodiversidade do hemisfério sul. Felizmente começam a surgir iniciativas reconhecidas e partilhadas por todos os que pretendem valorizar de forma equitativa os contributos que o saber indígena sobre as plantas e suas aplicações poderá ainda dar na descoberta de novos medicamentos.

[1] Cox, P. A. (2001) Ensuring Equitable Benefits: The Falealupo Covenant and the Isolation of Anti-Viral Drug Prostratin from a Samoan Medicinal Plant, Pharmaceutical Biology, 39: 33-40.

[2] Karasov, C. (2001) Who Reaps the Benefits of Biodiversity? Environmental Health Perspectives, 109: A582-A587.

 

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