Vêm aí três eleições? Temos tempo! Hoje, quero falar outra vez de um turismo cruel.
Criticar o turismo de massas é antidemocrático e antipatriótico, bem sei. Mas é uma atitude característica de quem, como eu, gosta tanto de pintura e sabe perfeitamente que é impossível reservar só para si qualquer sala de um grande museu. Deve ser por isso, aliás, que os ricos gostam imenso de comprar arte (excluo os novos-ricos, claro!), adquirindo pinturas e esculturas originais para as terem em casa e fruírem a seu bel-prazer. Mas eu não sou rico nem nada que se pareça e de modo algum desejaria ser um novo-rico a exibir extravagantes sinais exteriores de riqueza.
Ora sucede que, há já vários anos, talvez há mais de uma década, minha mulher e eu conseguimos entrar “a salto” (saltando por cima de uma fila interminável) no Museu de Orsay, em Paris, graças aos “bons ofícios” de um pintor francês nosso amigo, com acesso privilegiado, como todos os pintores, aos museus. As pinturas e esculturas ali expostas são sobretudo do período compreendido entre 1848 e 1914. Claro que o pintor nosso amigo nos levou directamente às obras de autores considerados mais importantes como, por exemplo, Van Gogh (Auto-Retrato, Igreja de Anvers, Noite de Estrelas sobre o Ródano), Édouard Manet (Olympia, Le déjeuner sur l’herbe), Edgar Degas (Prima Ballerina, O Absinto), Auguste Renoir (O Baloiço, Baile no Moulin de la Galette), Gustave Courbet (A Origem do Mundo, O Atelier do Pintor) e por aí fora, passando – à vol d’oiseau como a senhora Ratazzi, oportunamente vergastada por Camilo – por outras obras de admiráveis artistas como Delacroix, Cézanne, Gauguin, Monet, Pissarro, Klimt ou Rodin, sem esquecer o magnífico relógio no átrio principal.
Mas nem por ter entrado a salto foi fácil apreciar os quadros de Van Gogh, tal o mar de turistas que ali estavam a olhar para eles, com o mesmíssimo direito que eu. Claro que me lembrei ali de uma crónica, “Coração de Turista”, escrita por Fruttero & Lucentini (Carlo, 1926-2012, Franco, 1920-2002) no jornal La Stampa, de Turim, há meio século: “Duzentos turistas num claustro significam, na prática, a anulação do claustro. Trinta e cinco turistas perante um Caravaggio equivalem à supressão do Caravaggio. Porque se perde a concentração, assim como a lenta aproximação contemplativa, e essa maneira de andar em volta, de inclinar a cabeça, escolhendo como alvo determinados detalhes, absorvendo lentamente o conjunto, retendo no arquivo da memória, a pouco e pouco, uma obra-prima entre outras obras-primas, anteriores, contemporâneas, posteriores. Cotovelos nus cravam-se distraidamente nos nossos rins; ombros, ventres pressionam-nos por todos os lados; cabeças de turistas sobrepõem-se constantemente às cabeças (já cortadas) de Holofernes, de São João Baptista. Com que direito?”
Devo confessar, todavia, que por duas vezes consegui apreciar, em paz e sossego, duas pinturas admiráveis. Primeiro numa capela (?) em Toledo, em ambiente semelhante ao de um peep show, pude contemplar – sentado, quieto e calado, ao lado de não mais de meia dúzia de “mirones” – um admirável quadro de El Greco, O Enterro do Conde de Orgaz (na realidade, Gonzalo Ruiz de Toledo, Señor de Orgaz, vila que só a partir de 1522 se tornou condado). Em baixo, o enterro, a morte. Em cima, o céu, a vida eterna. No meio, os vivos, entre os quais só El Greco (auto-retrato) nos olha de frente. Picasso, sobre este quadro d’O Grego, descreveu coisas que jamais veremos. Viu: “Por cima do quadro um mocho que veio uma noite/ matar pombos na sala onde pinto/ todos os pombos/ sobre as teclas do piano a beata dum cigarro aceso/ e os dois guardas-civis atrás d’As Meninas/ no céu do enterro do C. de Orgaz Pepeillo – Gallito e Manolete – Nas suas camas As Meninas brincam ao enterro do Conde de Orgaz”.
Vários anos depois, em Sevilha, no Museu de Belas Artes, quase vazio, pude apreciar serenamente a Apoteose de São Tomás de Aquino, pintada em 1631 por Francisco de Zurbarán (1598-1664). Deve ser dos quadros mais notáveis, complexos e ambiciosos deste grande pintor espanhol. São Tomás de Aquino (1225-1274), conhecido como o Doutor Angélico, ocupa o centro do quadro, rodeado por quatro Padres (ou Pais) da Igreja. Acima dele, do lado esquerdo, surge o Espírito Santo, com o Cristo e a Virgem. Do lado direito estão São Paulo e São Domingos. Abaixo dele, do lado esquerdo, está um grupo de frades dominicanos em oração e, do lado direito, outro grupo de figuras também em oração, entre as quais se destaca o Imperador Carlos v.
Ao admirar esta pintura foi irresistível pensar no breve texto de Umberto Eco (1932-2016) “Sobre a alma dos embriões”, no qual o escritor, ensaísta e professor (cuja tese de doutoramento, em 1956, tem por título “O Problema Estético em São Tomás”) evoca o pensamento do grande teólogo italiano sobre a criação da alma, independentemente da matéria corporal. Para São Tomás, os vegetais têm uma “alma vegetativa” que nos animais é absorvida pela “alma sensitiva”, ao passo que nos seres humanos essas duas funções são absorvidas pela “alma racional”. E é a esta “alma” que o homem deve o facto de ser dotado de inteligência, o que “faz dele uma pessoa”. Umberto Eco cita a Summa Theologica e a Summa Contra Gentiles, e sublinha que São Tomás “tem uma visão muito biológica da formação do feto”. E explica: Deus só introduz, insufla, a alma, gradualmente, quando o feto adquire, primeiro, a “alma vegetativa” e, depois, a “alma sensitiva”. Apenas num corpo já formado é criada a “alma racional”. Subsiste, ainda hoje, a dúvida sobre esse exacto momento. Mas, para São Tomás, é óbvio que existe uma gradação na geração, “por causa das formas intermediárias de que é dotado o feto, desde a origem e até à sua forma final”. Mais: os embriões não participarão na ressurreição da carne, não ressuscitarão, pois a “alma racional” não foi infundida neles e, por isso, eles não são seres humanos. Afirma-o o Doutor Angélico.
São Tomás de Aquino não é uma autoridade qualquer. É, como salienta Umberto Eco, a “Autoridade por excelência”, é a “coluna que serve de suporte à teologia católica”. Coluna essa que, curiosamente – isto digo eu – é bem explícita no quadro de Zurbarán. Daí que para Eco sejam tão surpreendentes “as actuais posições neofundamentalistas católicas”. Caso para perguntar, como Giovanni Sartori, se não estará a estabelecer-se uma certa confusão entre a “defesa da vida” e a “defesa da vida humana”. O que nos levaria a considerar como “homicídios”, por exemplo, derramar esperma para fins não fecundantes, comer frangos, matar mosquitos ou consumir vegetais. Para já nem falar dos gurus que andam por aí com gaze na boca para não matarem microrganismos quando respiram. Por isso recomendo a certos católicos, talvez a todos, leitura atenta de São Tomás. E a visita à magnífica pintura de Francisco de Zurbarán.
Onde isto já vai! É altura do ponto final. E de olhar para a campanha eleitoral.
Escreve sem adopção das regras
do acordo ortográfico de 1990