Rúben Madureira aparece de cicerone, como quem não é ator, e a verdade é que isto também não será bem o que parece. A tragédia feita comédia, quase feita stand-up, quase feita revista. É que isto pode ser Shakespeare – o conhecido espetáculo As Obras Completas de William Shakespeare em 97 Minutos que estreia esta noite no Auditório dos Oceanos do Casino de Lisboa, com uma nova encenação, por António Pires – mas é Shakespeare a querer fazer rir, e à portuguesa.
Vamos então com calma. Muita calma, que mais cedo do que tarde andará Julieta a despejar indisposições gástricas sobre a plateia.
Primeiro, vamos lá saber quem foi William Shakespeare. E quem na sala já leu Shakespeare? Demasiados braços no ar para um trio de atores fingindo que não sabe ao que veio exatamente. Melhor será uma nova pergunta: então quem, quem já leu Sonho de Uma Noite de Verão. E menos braços são luz verde para que se dê início ao cumprir da promessa: uma viagem por 37 textos, prolongados ou abreviados, por vezes abreviadíssimos, do nome maior da literatura dramática de todos os tempos. Provavelmente no registo oposto ao que se esperava. Mas disso já tínhamos avisado.
Ao número de personagens, ao fim da primeira rábula já teremos perdido a conta, mas não ao de atores, isso nunca, que são apenas três, para qualquer conta: Pedro Pernas, Rúben Madureira e Telmo Ramalho. Três atores dirigidos por António Pires, que leu, releu e encenou Shakespeare já por várias vezes, hão de provar que para a encomenda bastam logo a partir de Romeu e Julieta. E daí, da mais universal das histórias de amor que conhece a cultura ocidental, cujos protagonistas aqui se conhecem entre copos de bebidas brancas numa festa techno, para Tito Andrónico em versão programa culinário, ou Otelo, o Mouro de Veneza pelo meio de rimas de hip hop, a Rei Lear e coroas que se passam como uma bola de futebol num jogo que chega em versão relato ou um Macbeth a meter McMenus (os do McDonald’s mesmo, que afinal “sotaque escocês” é só isso) serão uns curtos passos.
Por tragédias, comédias, peças históricas e um vislumbre de sonetos, em direção a um final que se demorará até que todos morram, por fim, em Hamlet. Da frente para trás e de trás para a frente – literalmente – com direito ao monólogo que ninguém quer dizer mas que Telmo Ramalho dirá, sem dificuldade.
A isto, As Obras Completas de William Shakespeare em 97 Minutos, que tem mesmo a duração de 97 minutos, chama António Pires “um clássico já”. É que o original da autoria de Adam Long, Daniel Singer e Jess Borgeson, traduzido para português por Célia Mendes, teve a sua primeira encenação em Portugal na já longínqua década de 1990. Para esta nova encenação, houve também um trabalho de adaptação para o tempo do digital, de Rosa Grilo e da CMTV, além das novelas portuguesas que estrearam entretanto. Cujos enredos, importa notar, servirão de carne para o chouriço-metáfora num exercício de simplificação das comédias shakespearianas.
Sobre a fórmula seguida aqui, António Pires explica: “Quando pegámos na tradução, percebemos que tínhamos que mudar algumas coisas e o que fizemos foi um trabalho de atualização. Pegámos no texto, na realidade e aquilo a que achamos graça nela e trabalhámos a partir daí, que é o que se faz quando se faz comédia”.
Mas, faz questão de sublinhar, com o devido respeito. “Isto é muito solto, muito disparatado, isto é comédia. Mas só gostando muito de Shakespeare é que se pode fazer isto, brincar com ele. O espetáculo é um jogo, uma brincadeira pegada com o público, mas obviamente com vários níveis. Quem conhece muito bem Shakespeare, quem está por dentro das peças, percebe-se perfeitamente o disparate e a brincadeira com aquilo tudo”. E, pelo meio “daquilo tudo” virá o texto como Shakespeare o escreveu – parte dele. E, com sorte, a vontade de ir lê-lo.