DONG! O sino da igreja de Orléansville acabara de dar a badalada única e solitária da uma hora da manhã. Um silêncio estranho pairava sobre a cidade. E um frio, como se o vento de norte teimasse em infiltrar-se pelas frinchas das janelas do destino.
Depois, o mundo como fora até aí no vale do rio Chelife deixou de existir.
Orléansville viria, mais tarde, a ser chamada de Chlef.
Antes do domínio francês na Argélia, tivera o nome de El Asnan. Poderia alguém encontrar-lhe designação mais certeira? El Asnan significa As Ruínas.
No dia 10 de setembro de 1954, Orléansville ficou reduzida a ruínas. Os edifícios abanaram nos seus alicerces e começaram a desfazer-se. Uma força bruta atirou as pessoas para um vórtice de incompreensão e pavor. Num instante, pouco mais de um minuto, o silêncio da noite de Orléansville era estilhaçado por gritos e choros, por uivos de desespero e por angustiadas súplicas. Todas as luzes se apagaram. Os habitantes foram obrigados a procurar uns pelos outros em plena escuridão. Nem o luar os ajudou.
Gente de um lado para o outro num pânico atroz, muitos de pijama, outros de roupas desfeitas, rasgadas. Móveis espalhados pelos passeios, montes de alvenaria, vidraças no chão rasgavam pés que corriam descalços.
Os estrondos sucediam-se.
Toda a terra era assolada por soluços contínuos. Como se ela própria não conseguisse conter o pranto.
“O Terror de Orléansville”, berraram as manchetes dos jornais.
Sinetas de carros de bombeiros, uma nuvem espessa de poeira, crianças perdidas que o solo não engoliu nas crateras abertas, rasgões extremos, fraturas no alcatrão.
Feridas gigantes que demorariam anos a cicatrizar.
As Ruínas: não poderia haver outro nome para El Asnan.
Uma mulher enlouquecida, incapaz de se mover, em traje de noite branco, parecia um fantasma suicida. Gemia como um animal alucinado.
As contas começaram a ser feitas.
As contas do terror, sem prova dos nove.
Vinte mil almas sem lar.
Mais de 6 mil feridos.
Mortos ainda por somar.
A morte soma-se ou diminui-se?
Qual é a aritmética da devastação?
Em redor de Orléansville, povoações desapareceram do mapa: Ponteba, Bougainville, Flatters e Vauban.
Às seis horas da manhã, em Argel, na capital, sentiu-se uma réplica durante mais de dez segundos.
Às 11 horas, havia 590 cadáveres confirmados.
Um edifício de nove andares, orgulho da cidade, a Escola Primária Superior e o Colégio de Orléansville, não passava de um monte de pedras e pó.
Cidade perdida Mais de 40 mil habitantes tinha Orléansville nesse dia de setembro de 1954.
Os franceses consideraram a cidade perdida. Mais de 90% dos edifícios tombados no abalo estavam irreconhecíveis e seria impossível reconstruí-los.
Havia lençóis entrançados dependurados de buracos abertos nas casas que ainda se mantinham teimosamente de pé. Pontos de fuga.
A porta da cadeia manteve-se escancarada. A polícia deu oportunidade aos criminosos de fugirem. Mais de uma dezena continuaram encarcerados. Fechados para sempre na teia sem piedade da morte.
Sete graus na escala de Richter.
Ninguém seria capaz de adivinhar que era apenas o início de um pânico irreprimível. Seis dias mais tarde, outro terramoto de idênticas proporções desfez o que restava de Orléansville.
A morte voltou em fúria incontida e levou mais mil pessoas.
Cristãos e muçulmanos viravam-se em desespero para um Deus comum.
A natureza não quis nem saber. Escolhera aquele local para desferir o seu golpe de desgraça. E não saciara a fome de catástrofe da primeira vez. A senhora da gadanha não sabe o que é a misericórdia. E permite-se negar o divino.