Na Alemanha o muro re-ergueu-se


Ao betão pré-fabricado sucederam as notas de euro, mais escassas a leste, mais eficazes a cavar fronteiras entre alemães.


O discurso simbólico é particularmente poderoso. Grande parte deste poder resulta da capacidade de simplificação, conducente ao imediatismo da comunicação. A eficácia da comunicação sempre se mediu pela velocidade. Vistas a partir desta dimensão, as tecnologias da informação limitaram-se a eliminar a variável velocidade por via da comunicação instantânea.

A queda do muro de Berlim integrará facilmente a lista das 10 imagens mais fortes do século XX, certamente a lista das 5 primeiras do pós II guerra fria. Se quisermos entregar-nos aos ditames da boa consciência e do “feel good” será esta a imagem que a maior parte dos ocidentais quererá associar ao fim da guerra fria.

No entanto há razões, cada vez mais abundantes e mais presentes, para começar a desconfiar da unicidade das imagens associadas ao muro. Em grande medida o muro nunca caiu. Ou, pior, re-ergueu-se. A reunificação alemã aconteceu no plano internacional num “marchandage” em que Kohl conseguiu, sucessivamente, a não oposição de Gorbachov, Reagan, Miterrand e Tatcher (vencida mas não convencida: “Gosto tanto da Alemanha que prefiro ter duas.”). Curiosamente só Miterrand teve a capacidade de cobrar um preço pelo consentimento dado à reunificação, exigindo a abertura do caminho para o euro, embora cedendo ao modelo decalcado a partir do marco alemão e da obsessão teutónica com o controlo da inflação.

Dentro da nova fronteira alemã a reunificação continua por fazer. As diferenças entre Wessis e Ossis não se atenuaram a não ser para os Ossis que migraram para os Länder a ocidente. A leste a memória da economia planificada foi exacerbada pela desindustrialização acelerada e particularmente mal gerida. A versão local do luso Instituto das Participações do Estado, Treuhandanstalt, teve de ser desmultiplicada em três, com outro nome, com o propósito de apagar a má memória dos encerramentos administrativos de empresas públicas que muitos consideravam viáveis. A chegada da sociedade de consumo a leste veio acompanhada da redução drástica das prestações sociais garantidas pela RDA. A exposição à diversidade cultural, que sempre fora reduzida, evoluiu rapidamente para a xenofobia. A saudade do autoritarismo conviveu, de forma não necessariamente contraditória, com a prosperidade das actividades mafiosas na fronteira externa a leste, com tráficos de droga, seres humanos, armas e até o mais normal “contrabando com fuga ao controlo alfandegário. E claro o PIB per capita e sobretudo o rendimento disponível dos Ossis são metade dos percebidos pelos Wessis.

Traduzindo a realidade económica e social em escolhas políticas a Alemanha de Leste guardou espaço para o “antigamente é que era bom” com o recauchutar do partido comunista transformado em Die Linke (“a esquerda”) e abriu caminho para a expressão política da xenofobia com a Alternativ für Deutschland (um partido fundado para retomar o marco e que encontrou a via do sucesso no combate à política de imigração de Merkel).

No passado fim de semana todos suspiraram de alívio por a Afd não ter sido o partido mais votado nas eleições regionais em Brandeburgo e na Saxónia (obteve “apenas” um quarto dos votos). Os restantes partidos pretendem manter o cordão sanitário em torno da AfD e multiplicar as coligações contra natura, todos contra a AfD.

Manter os alemães de leste com 50% da riqueza dos vizinhos ocidentais só reforçará o apetite eleitoral pela AfD, apetite redobrado com a exclusão da AfD das soluções governativas dos Länder a leste.

 

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990