A reabertura dos tribunais


Esta data costuma ser utilizada pelo legislador para iniciar a aplicação de reformas de fundo, normalmente com resultados desastrosos no sistema judicial.


Esta semana verificou-se a reabertura dos tribunais, após o normal período de férias judiciais. Não se trata do início do ano judicial uma vez que, nos termos legais, o ano judicial coincide com o ano civil. Essa tem sido a tradicional opção do legislador, apenas tendo sido excepcionada entre 2014 e 2016, em que o ano judicial teve início em Setembro. A partir de 2017 o ano judicial voltou a coincidir com o civil e assim se tem mantido, pelo que, apenas em Janeiro de 2020 o novo ano judicial se iniciará, como uma cerimónia solene no Supremo Tribunal de Justiça, em que usarão da palavra o Presidente da República, o presidente da Assembleia da República, o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, o primeiro-ministro ou o ministro da Justiça, o procurador-geral da República e o bastonário da Ordem dos Advogados.

No entanto, na percepção dos profissionais do sector, a reabertura dos tribunais em Setembro é vista como o verdadeiro reinício do seu trabalho, após as férias que conseguiram ter. Na verdade, é nesta data que se verificam os movimentos judiciais, que alteram a colocação dos magistrados e dos funcionários nos tribunais. Por isso, esta data também costuma ser utilizada pelo legislador para iniciar a aplicação de reformas de fundo, normalmente com resultados desastrosos no sistema judicial. Foi assim que em Setembro de 2014 foram de uma só vez encerrados 47 tribunais e se reduziu a nossa organização judiciária a apenas 23 comarcas, tendo em consequência ocorrido o colapso do sistema informático Citius, que impossibilitou durante várias semanas o trabalho nos tribunais.

Embora a situação viesse posteriormente a ser atenuada, com a reinstalação de alguns tribunais a partir de 2016, a verdade é que o país ficou com uma organização judiciária extremamente pobre, e os poucos tribunais que restaram funcionam presentemente em condições deploráveis. Foi por isso objecto de notícia recente que o relatório dos 23 presidentes das comarcas portugueses relativo a 2018 fazia um retrato absolutamente arrasador da falta de condições de funcionamento dos tribunais portugueses, descrevendo o carácter obsoleto dos computadores e impressoras, as instalações sanitárias encerradas, a existência de infiltrações, a realização de julgamentos em contentores, a falta de ar condicionado e até a infestação por pragas. É absolutamente inacreditável que o governo deixe os tribunais portugueses funcionarem nestas condições, quando recebe custas judiciais elevadíssimas e até se encontra a poupar milhões no apoio judiciário, especialmente porque não actualiza desde 2004 a remuneração dos advogados que trabalham neste sector, até em contrariedade à lei que desde 2018 impõe a sua actualização anual.

A reabertura dos tribunais em Setembro de 2019 ocorre assim com o seu funcionamento em condições dramáticas, mas isso não impede que, a relembrar 2014, estejam agora a ocorrer alterações importantes no seu funcionamento, mais uma vez com a falta de adequada preparação. É assim que, em 26 de Julho passado, em pleno período de férias judiciais, foi publicado o Decreto-Lei 96/2019, que altera o Código de Processo Civil. O referido diploma vai entrar em vigor já a 16 de Setembro e, para além de algumas alterações pitorescas, como a instituição de um princípio da utilização da linguagem simples e clara (novo art. 9º-A CPC), cuja violação não se sabe se passou a constituir fundamento de recurso, efectua algumas alterações indicativas da desconsideração do poder político pelos tribunais.

Assim, demonstrando bem o resultado do encerramento de tantos tribunais, agora as testemunhas podem ser ouvidas à distância, não apenas nos tribunais, mas também nas instalações do município ou da freguesia, ou de outro edifício público da área da sua residência (art. 502º CPC). É difícil imaginar maior degradação do poder judicial, com o facto de agora as testemunhas se poderem deslocar a qualquer edifício público, quando chamadas a juízo. Há uns anos uma testemunha, quando era ouvida, deslocava-se a um edifício imponente, intitulado “domus iustitiae”, a casa da justiça, e ficava a saber que a justiça tinha uma casa, onde a sua função era exercida com dignidade. Agora, depois do encerramento de tantos tribunais, fica a saber que a justiça, ou não tem casas em condições, ou nem sequer já tem casas, funcionando como uma espécie de sem abrigo, a necessitar de recorrer a edifícios alheios.

As funções básicas do Estado são assegurar a justiça e a segurança dos cidadãos. Quando a justiça que não funciona em condições dignas, o Estado está a falhar numa sua função básica. Os tribunais têm que voltar a ser em número suficiente e a funcionar em condições. Espera-se que nos anos futuros seja isso o que venha a ser implementado em Setembro, aquando da reabertura dos tribunais.

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990