Nesta manhã com pó de agosto meio antigo, parece que se raspou da memória o excesso nostálgico, e, assim, voltam a assombrar-nos certos detalhes daquele verão em que o idílio da paz e do amor apareceu esventrado, num crime de contornos macabros. Meio século depois dos crimes da família Manson, e passados dois anos sobre a morte do infame meia-leca que capturou o imaginário popular, a ficção voltou a valer-se do seu mito para estabelecer uma cronologia do mal. Talvez o nosso seja um tempo que o cinema já não consegue captar a atribulada narrativa deste tempo, exigindo um olhar de mosca. Daí que dois dos mais destacados cineastas dos nossos dias tenham buscado um fio narrativo indo aos antecedentes, como quem se afasta para ganhar coragem frente ao desafio de se compreender “a vida mutilada no mundo em que vivemos”.
No passado dia 15, chegou às salas de cinema o nono filme de Quentin Tarantino, Era Uma Vez… em Hollywood, e no dia 16 estreou na Netflix a segunda temporada de Mindhunter, de David Fincher. Charles Manson comparece em ambos, e interpretado pelo mesmo actor, Damon Herriman. Mas este vínculo apenas denota a diferença na abordagem de dois dos mais celebrados nomes em Hollywood, e que gozam de ampla folga para filmar o que lhes der na veneta pois não deixam de encher os bolsos dos executivos. O que também os une é uma sedutora apropriação da violência, que se torna uma forma de artíficio elevado a razão estética.
Absolutamente confiante no seu papel de criador de mitos, Tarantino parece deslumbrado com a capacidade de afectar a cultura pop, e como um miúdo munido de uma lupa num dia solarengo, desviando e engrossando o raio de sol para perseguir formigas com um furor vingativo. A sua justiça sinaliza já o efeito de miopia com que hoje interpretamos o passado. Como um anjo vingador, este assumido fã das mitologias da BD, serve-se da prepotência de todo o propagandista, e alegra-se com o poder de distorção do cinema para fabricar o seu ajuste de contas. A suposta “catarse” que oferece às audiências é tão ajustada como tratar uma mutilação com um penso rápido. O seu equívoco nasce de uma leitura bastante literal da História. Depois de perseguir os esclavagistas e a elite nazi, chegou a vez dessa "quintessencial figura" do imaginário norte-americano: o assassino em série. E, por uma vez, Tarantino parece ter desafiado um adversário à sua altura. Afinal, Manson não é outra coisa que o mais emblemático papão na ingénua formação do universo mitológico americano, o qual, sem grande margem para o mistério e o inexplicável, assenta sobre uma narrativa moral que opõe heróis a vilões. Mesmo a realidade, para se impor, precisa de surgir alinhada com o quadro de estereótipos da ficção, e, por isso, aguarda sempre uma tradução espectacular para vingar. É fácil, portanto, imaginar que Manson possa ser atingido no seu prestígio por um filme que domina o código pop, e pretende fazer uns ajustes na sua genética. Desclassificando Manson, e fazendo dele um mero figurante, Tarantino sugere que não passou de mais um parasita que se limitou a aferroar o país e a chocar o seu imaginário num momento de particular fragilidade.
Por comparação, David Fincher surge como um hermeneuta, um estudioso dedicado ao fenómeno dos serial killers, e, ao visitar Manson na prisão, ouve-o, deixa-se fascinar por ele, para depois dissecar as suas palavras, reconhecendo que, ao invés de um mestre do crime, e de um sagaz manipulador, ele pode ter começado um fogo que não teve como extinguir. Na segunda temporada de Mindhunter, o poder da ficção é exercido sobretudo como um meio de especulação sobre essas zonas cinzentas com que somos confrontados ao tentar analisar o espaço que vai das motivações dos homens àquilo que, quando procuram materializá-las, acaba por se lhes impor. A vontade é, afinal, apenas um dos sinais numa complicada equação.
A tão ansiada entrevista dos agentes do FBI, Holden Ford (Jonathan Groff) e Bill Tench (Holt McCallany), a Manson surge como um desvio à linha central da narrativa – a caça ao autor de dezenas de homícidios de crianças e adolescentes negros em Atlanta, entre 1979 e 1981. A série é baseada nas memórias de John E. Douglas, um livro publicado em 1995 pelo então reformado agente que teve um papel decisivo na criação da unidade que veio a cunhar o termo serial killer, catalogando os diversos perfis deste tipo de homicidas. A obra de Douglas tornou-se uma influência decisiva, e antes de Holden Ford tinha inspirado personagens em O Silêncio dos Inocentes e numa série de outras produções televisivas e filmes envolvendo a investigação deste tipo de crimes.
O terror também teve a sua época de ouro, e Manson soube projectar-se no imaginário popular como mais nenhum outro assassino em série. Mindhunter chega no rescaldo, enquadrando o período de finais dos anos 70, e balança entre hipóteses, sem aquietar a dúvida nem oferecer consolo. E decididamente não embarca em fantasias. O perfil de Manson é alvo de uma discussão bastante séria. Depois de Holden ouvir a tese da acusação da boca de Charles “Tex” Watson (um dos jovens da seita de Manson que, nas primeiras horas da madrugada de 9 de agosto de 1967, invadiu a casa de Cielo Drive, cometendo o brutal massacre que abalou o país) esta é contraposta à tese do próprio Manson, e surge então a terceira narrativa, misturando elementos das duas, e segundo a qual Manson, na sua ânsia de poder, teria desencadeado uma sequência de eventos que lhe fugiram do controlo. Esta série cativa a sua audiência sem ceder ao apelo mais básico deste tipo de personagens, e que permite que haja, como indicou o criminologista Scott Bonn, uma indistinção para o público entre ficção e realidade, com um serial killer real, como Jeffrey Dahmer, e um ficcional, como Hannibal Lecter, a exercerem um mesmo fascínio.
Numa consulta que realizou para o livro Why We Love Serial Killers, Bonn demonstrou como, no que toca a serial killers, a cultura popular entranhou de tal modo a condição mítica destas figuras que a realidade não se consegue livrar das persistentes e, tantas vezes redutoras, noções que a ficção tem elaborado. Assim, consultando os artigos de duas publicações de referência – o jornal The New York Times e a revista Time – entre 1995 e 2013, Bonn deu-se conta de que em 35% dos casos eram usados termos como “demónio”, “monstro” e “mal”, e concluiu que, mesmo nos títulos mais credíveis há a tendência para “embalar na narrativa do monstro”. E acrescenta: “Esta conversa do bem e do mal é uma mentalidade que nos é ensinada a toda a hora, e tendemos a arrumar as coisas nesse quadro”.
Para o criminologista, esta narrativa do monstro serve para fazer frente a algo demasiado perturbador, e que a sociedade prefere não encarar de frente. “O mal não precisa ser compreendido, apenas eliminado. Assim, a ânsia de obter respostas satisfaz-se se o culpado for descoberto. O peso de ter de analisar as complicadas motivações de um homicida destes é algo com que ninguém quer arcar. Assim, os detalhes mais tenebrosos são amalgamados dando origem a esta figura: o assassino em série. Este papão, aos poucos, foi-se tornando cada vez menos uma ameaça para se afirmar como mais uma figura residente do nosso elenco, e até é bastante útil na hora de aumentar as vendas dos jornais e ajudar a elevar a parada nas nossas ficções."
David Schmid, um professor de Inglês na Universidade de Buffalo que estudou a celebridade dos assassinos em série nos EUA, defende que parte do fascínio das pessoas com estes criminosos é a forma como desobedecem de forma tão violenta ao código moral, colocando-se a si e aos seus desejos sempre em primeiro lugar. A sua compulsão leva-os a encenarem as suas fantasias contra o mundo, num riso bárbaro e que faz estremecer toda a sociedade. “Não é que no nosso íntimo queiramos sair por aí a matar pessoas, mas face a estes casos, damos por nós a perguntar que tipo de vida levaríamos se pudéssemos fazer o que quer que nos passasse pela cabeça”, disse Schmid a Julie Beck, num artigo publicado na The Atlantic, em 2014.
De acordo com um estudo da Universidade Radford, desde 1900 foram indentificados mais de 2600 assassinos em série nos EUA. O segundo país na lista é o Reino Unido, e o número desce para 142. Por esta razão, ainda que o fenómeno não seja exclusivo dos EUA, os números deixam claro que este tipo de crimes decorrem de um certo quadro em que a super abundância de meios se contrapõe a uma super abundância do terror que é necessário para que as pessoas não se sirvam deles vingando-se da ordem moral ao realizarem as suas perversões mais inconfessáveis. Na primeira temporada de Mindhunter, diante de uma turma de novatos, Holden dizia-lhes: "Se estamos à procura de um motivo, às tantas constatamos que não há nenhum. É como um vazio. É um buraco negro.” E a questão que fica no ar é: como se pode dar caça a algo que age por motivações que parecem desafiar tudo o que pensamos sobre os homens? Na forma repetida como estes homicidas violam o mais óbvio dos mandamentos, evoluindo, aprimorando a sua técnica, com um desprezo absoluto por tudo, uma ferocidade e, às vezes, uma paciência que revela método na sua loucura, os assassinos em série parecem zombar de tudo o que para nós é sagrado. E se as estórias que contamos são a melhor estratégia que temos contra o absurdo, e até contra o silêncio ou a ausência de Deus, se estas, de noite, nos ajudam a adormecer, é curioso pensar nas palavras de Manson, quando Holden aceita que este autografe um best seller escrito sobre os seus crimes: “Cada noite, enquanto dormes, eu destruo o mundo.”