Em 1978, Mauro Capelletti e Bryant Garth publicaram na Buffalo Law Review um artigo intitulado “Access to Justice: The Newest Wave in the Worldwide Movement to Make Rights Effective”. Nesse artigo era demonstrada a ineficiência do sistema judicial tradicional em garantir os direitos, devido à desigualdade existente entre as partes no acesso aos tribunais. Precisamente por esse motivo, os autores defendiam a consideração do acesso à justiça como “o ‘direito humano’ mais básico num sistema jurídico moderno e igualitário cujo propósito seja garantir, e não apenas proclamar, os direitos de todos”.
Como obstáculos ao exercício deste direito, os autores indicavam as elevadas custas judiciais e a duração habitual dos processos, que desincentivam os cidadãos do acesso à justiça. Em relação às custas judiciais, as mesmas constituem um enorme entrave ao exercício dos direitos, especialmente no caso das acções de pequeno valor, em que o recurso a tribunal pode não compensar, devido ao que se gasta no processo. Mas também o tempo de duração dos processos é desanimador para os cidadãos se decidirem pelo recurso aos tribunais.
Precisamente por isso, os autores defenderam que depois das soluções processuais para tutela judicial dos direitos dos cidadãos mais pobres (primeira vaga), bem como para representação dos interesses difusos (segunda vaga), deveria ocorrer uma terceira vaga que permitisse considerar uma ampla colocação de meios ao dispor dos cidadãos não apenas para resolver, mas também para prevenir os litígios na sociedade e reduzir os custos e a duração dos processos. Nessa função de prevenção seria muito importante o papel dos advogados, já que a advocacia preventiva tem uma grande capacidade de evitar os litígios na sociedade. Mas existe também a necessidade de adaptar o processo civil aos diversos tipos de litígios, uma vez que a especialização é fundamental para a eficácia e celeridade dos processos. Nesse âmbito seria, assim, necessária a criação de processos especiais para as pequenas acções, admitindo também os autores o recurso à mediação e à arbitragem para esse efeito.
Este artigo foi essencial para o reconhecimento mundial do acesso à justiça como direito fundamental dos consumidores. Em Portugal, no entanto, o movimento do acesso à justiça não só nunca teve aplicação efectiva como inclusivamente foi objecto de um retrocesso profundo. Basta ver que o art.o 14.o da lei 24/96, de 31 de Julho, Lei de Defesa do Consumidor, garantia aos consumidores o direito à protecção jurídica e a uma justiça acessível e pronta. Para esse efeito era reconhecido aos consumidores o direito à isenção de preparos nos processos em que pretendessem a protecção dos seus interesses ou direitos, o direito à isenção de custas em caso de procedência parcial da acção, bem como, em caso de decaimento total, a fixação das custas entre um décimo e a totalidade das que normalmente seriam devidas, tendo em conta a sua situação económica e a razão formal ou substantiva da improcedência.
Estas disposições em matéria de custas viriam, no entanto, a ser revogadas em 2008 pelo decreto-lei 34/2008, de 26 de Fevereiro, Regulamento das Custas Processuais, resultando desde então valores astronómicos de custas no acesso aos tribunais que os cidadãos têm de pagar, adiantadamente, na totalidade. Há dias, no entanto, através da lei 63/2019, de 16 de Agosto, houve uma muito tímida repristinação dessas disposições. O art.o 14.o da Lei 24/96 passou a submeter os conflitos de consumo de reduzido valor económico, por opção do consumidor, à arbitragem necessária e à mediação. Só que, em termos de custas, o consumidor é apenas dispensado do pagamento prévio da taxa de justiça, tendo de pagar afinal a que for devida nos termos normais. E, em lugar de se instituir de forma adequada o recurso a uma advocacia preventiva, limita-se a estabelecer uma notificação, no início do processo, de que o cidadão se pode fazer representar por advogado e solicitador, podendo recorrer a apoio judiciário nos termos gerais.
Daqui resulta que esta alteração à Lei de Defesa do Consumidor se traduz, na prática, numa mão cheia de nada e noutra de coisa nenhuma. Portugal continua, assim, com mais de quatro décadas de atraso em relação ao reconhecimento do direito de acesso à justiça dos cidadãos.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990