Por estes dias, tanta caramunha com práticas de governantes estrangeiros cotadas como novas versões musculadas de “extrema-direita”, na versão naife de totalitários avulsos de esquerda, quando, afinal, cá dentro, eles são tão reproduzidos e imitados, ficando sem se saber se é a homenagem que o vício presta à virtude, se a “virtude” doméstica é ela própria o vício.
1. Nesta greve dos motoristas, vimos ministros a tentar transformar profissionais em inimigos da pátria e da sociedade. Sindicalistas objeto de notícias que fizeram lembrar as nascidas de centrais pidescas de contrainformação, violando direitos de personalidade como o bom nome, a honradez e a presunção de inocência.
Militares aos comandos de viaturas-bomba, propriedade de empresas particulares – assim continuando a faturar como se não houvesse greve –, em circunstâncias de artificialismo bélico e sem se saber muito bem com que cobertura legal.
A páginas tantas, pareceu não faltar muito para ser aplicada a lei 44/86, do “Regime do estado de sítio e do estado de emergência”, e declarado o “Estado de exceção”, assim se pondo em causa a norma aplicável às “Garantias dos direitos dos cidadãos”.
O gonçalvismo não desdenharia ser o protagonista desta bravata, num momento “heroico” pela pátria e pelo povo, assim assumindo, a partir do Governo, uma nova versão da luta de classes.
Desta vez, com tudo ao contrário: o capital aliado ao Governo de esquerdistas e por este recebido de braços abertos para derrotar o trabalho, sendo este acusado de ter cometido o “crime” de autonomia das centrais sindicais, que julgavam ter o exclusivo da sua representação nacional.
Para o futuro fica o balanço do que um partido e um Governo são capazes de fazer perante um desafio que possa prejudicar interesses eleitorais iminentes.
A. Costa, na frieza e oportunidade política de defenestrar princípios básicos de um Estado que se deve conduzir no respeito pelas partes – Estado em nome do qual é primeiro-ministro não sufragado diretamente em eleições –, não deixou dúvidas sobre o que faria se, por exemplo, uma hipotética corrente de migrantes clandestinos se estabelecesse numa nova rota mediterrânica para o Algarve.
Que ninguém duvide, chamaria à colação o manual de Salvini, bloqueando as entradas marítimas, invocando, grandioso, a mesma atitude patriota que teve com os combustíveis e, de seguida, partiria para Bruxelas apelando ao caráter humanitário da Europa para o acolhimento de refugiados, verberando quem não os acolhe.
No caso doméstico, um destes dias, depois do interregno, tudo voltará à normalidade e ouvir-se-á que os trabalhadores podem confiar no PS e o capital que se ponha fino, tudo dito enquanto olha ao viés para a sua esquerda.
Esta a bíblia de procedimentos duais com este Governo mailos seus apoiantes. Esta a lição destes lamentáveis dias, sobre a duplicidade política em que vivemos.
É uma evidência que não é isto que faz uma democracia moderna e de qualidade afirmada. Esta democracia produz a desconfiança, mesmo a risota comunitária, razão do nosso atraso e crescimento débeis.
Tudo isto se deve ao monolitismo como pano de fundo da sociedade portuguesa, tal e qual como antes de 74, só possível porque 40 anos de semeadura da obediência sem questionamento coletivo o permitem, numa sociedade conformada e tranquila mesmo quando se sabe que, de novo, está condicionada na sua soberania e vontade, essencialmente por um sistema eleitoral que faz por retirar à sua vontade a escolha direta dos eleitos.
Esta a razão do atraso em que vivemos comparativamente com outros Estados e tal como no anterior regime, baseado em condicionamentos políticos, económicos, sociais e culturais.
Condicionamentos e mais condicionamentos, em pinceladas de uma sociedade sem liberdade e responsabilidade como matriz de referência, permitindo um Estado vigilante, manipulado por quem circunstancialmente é poder.
Estes dias, de governamental agitação e propaganda, têm mostrado uma similitude grandiosa do exercício desses condicionamentos, na impunidade e privilégio de que goza por via do controlo mediático, da ocupação ad nauseam do aparelho do Estado e do compadrio com o PCP e o BE, atuando não em obediência à boa gestão da coisa pública, mas da mera manutenção no poder.
Do Estado e do Governo, que nada faz para reforçar a sociedade, mas tudo decide para coartar liberdades e chamar cada vez mais a si áreas de influência.
E este quadro, pior notícia, está a adquirir consagração paraconstitucional.
2. Na mesma semana em que foi exibida a peça dos combustíveis, atente-se na promulgação da Lei de Bases da Saúde, confirmada por Belém, mexida pelo PS na sua deambulação totalitária, sob pressão do PCP/BE, estes na sua plenitude estatizante.
O PCP e o BE não dão ponto sem nó e estão conscientes da necessidade de aproveitarem a onda costeira de rendição ao radicalismo e condicionamento económico e social para inibir na lei a confiança no alargamento do investimento dos privados na saúde.
Isto é, mais liberdade e acesso a melhor gestão e diversidade de oferta de serviços de qualidade.
Onde era clara a celebração de parcerias para a gestão de hospitais, fica a posição de ser excecional essa política.
No final, faça-se justiça: da tríade de partidos que nos governam, defesa de convicções de quem propôs; de quem promulgou, cedência política em toda a linha.
Tudo isto num país onde, do taxista ao catedrático, todos sabem que a sustentabilidade do sistema nacional de saúde tem a solidez de um cubo de gelo exposto ao sol do deserto.
Lembrei, por isso, um amigo que me estabeleceu a diferença entre Portugal ter um Presidente da República eleito pelos votos da direita ou residir em Belém um Presidente eleito pelos votos da esquerda.
Resposta dele: nenhuma diferença.
Este (o eleito pelos votos da esquerda) promulgaria os diplomas da esquerda, feliz e sem lamentos; aquele (o eleito pelos votos de direita) promulga os diplomas da esquerda, incomodado e com lamentos.
Isto é, a lamechice está a adquirir consagração constitucional como modo de expressão política.
Neste contexto, que se esperava em resposta ao aproveitamento da esquerda para condicionar ainda mais a sociedade portuguesa numa área tão sensível como é a saúde?
Que a lei fosse vetada e se seguissem os mecanismos constitucionais com um final decisório, fosse ele qual fosse. O sinal estava dado.
Não, a vontade política no país parece ser só uma: a da maioria parlamentar.
Nem já o envio de qualquer diploma ao Tribunal Constitucional para verificação de constitucionalidade, nem a utilização de mensagens ao Parlamento sobre questões essenciais do país, nos termos da Constituição.
Se assim é, que constitucionalistas da praça, a começar pelo próprio prof. Marcelo Rebelo de Sousa, ajudem por uma vez à clarificação do regime e proponham que a eleição do PR/rei ou rainha se faça no Parlamento.
Aí, tudo ganha normalidade.
A continuarmos assim, entramos na terra de ninguém quanto à obediência a um pensamento para o país e a uma referência para a matriz política no Estado, baseada num compromisso eletivo.
Há sinais de totalitarização do regime em que já se tenta executar sindicatos na praça pública e trabalhadores são caçados na própria casa para serem obrigados a trabalhar, à margem de qualquer norma aplicável.
Há hoje em Portugal um populismo mitigado e medroso, conivente e objetivamente ao serviço implícito do populismo no Governo.
Já vimos este filme quanto à desconformidade com a vontade popular antes do 25 de Abril.
Quando a surdez institucional alastra desta forma, por quem dobrarão os sinos quando tudo for claro nas suas consequências?
Jurista
Escreve quinzenalmente