Autofagia ou o mito de Erisícton


Agitadores demagogos e populistas que esbracejam como o dr. Pardal Henriques, o dr. Marinho e Pinto e o dr. André Ventura – todos doutores num país de doutores & engenheiros! – fazem objectivamente o jogo da extrema-direita ou são mesmo seus militantes.


A greve dos “camionistas de matérias perigosas” do dr. Pardal – que nem sequer tem uma carta de pesados mas é simultaneamente vice-presidente, porta-voz e consultor jurídico dum sindicato por ele criado à pressa – é um exemplo flagrante do fenómeno da autofagia, infelizmente característico das democracias, em que vemos uma minoria de pessoas, neste caso “camionistas de matérias perigosas”, a jogar contra os seus interesses fundamentais, apostando em desestabilizar o seu país, sem se darem conta de que estão a favorecer, neste caso, o desejo de protagonismo mediático e as ambições políticas pessoais do seu mentor, agitador e, afinal, “agente provocador”, ao que consta candidato a deputado pelo partido do dr. Marinho e Pinto, um populista que dá passos maiores que a perna.

Agitadores demagogos e populistas que esbracejam como o dr. Pardal Henriques, o dr. Marinho e Pinto e o dr. André Ventura – todos doutores num país de doutores & engenheiros! – fazem objectivamente o jogo da extrema-direita ou são mesmo seus militantes. Em Portugal, felizmente, estes extremistas não têm conseguido ir nada longe nas tentativas de arrastar multidões descontentes (os “camionistas de matérias perigosas” não são multidão) contra o poder democrático. Mas fazem-me evocar o mito de Erisícton recordado por Anselm Jappe no seu mais recente ensaio editado em Portugal: A Sociedade Autofágica – Capitalismo, desmesura e autodestruição (Antígona, Maio de 2019, tradução de Júlio Henriques).

Conforme narra Anselm Jappe, referindo como fontes Calímaco (“Hino a Deméter”) e Ovídio (Metamorfoses VIII, 738-878), Erisícton era filho de Triopas, que se tornou rei da Tessália depois de ter expulsado os pelásgios, seus habitantes autóctones, que tinham consagrado a Deméter, deusa das colheitas, um bosque magnífico no centro do qual se erguia uma árvore gigantesca, à sombra da qual dançavam as dríades ou ninfas das florestas. Ora, Erisícton queria à viva força transformar essa árvore em tábuas para o soalho do seu palácio em construção e foi até lá com os servos, munidos de machados, que começaram a abater a árvore. Apareceu então a própria Deméter, disfarçada de sacerdotisa, exortando Erisícton a renunciar ao seu intento. Mas ele desprezou-a e, quando viu os servos paralisados pelo medo de cometerem um sacrilégio, empunhou um machado e ele próprio cortou cerce a cabeça de um deles e, de seguida, “derrubou a árvore, apesar do sangue que dela jorrava e da voz que dela provinha anunciando-lhe uma punição”.

Deméter enviou-lhe, então, a Fome personificada, que penetrou, através do sopro, no corpo do culpado, Erisícton, que se tornou presa de uma fome que nada podia saciar. Quanto mais comia, mais fome tinha. Engoliu todas as suas provisões, os seus rebanhos e os seus cavalos de corrida, mas o estômago continuava vazio e ele ia definhando a olhos vistos. Acabou mesmo por consumir, como um fogo que tudo devora, o bastante para alimentar uma cidade ou um povo inteiro. Segundo Calímaco, Erisícton teve de esconder-se em casa, renunciando a sair e a participar em banquetes. Depois de ter arruinado a casa paterna, acabou a mendigar na rua comida para a boca. Segundo Ovídio, Erisícton chegou mesmo a vender a própria filha, Mestra, para comprar comida. Ela conseguia fugir de quem a comprava, pois tinha o dom da metamorfose que Posídon lhe concedera, mas regressava sempre à casa do pai, Erisícton, que assim a conseguiu vender várias vezes.

Nada acalmava, porém, a fome de Erisícton, e “(…) quando a violência do seu mal esgotou todos os alimentos/ e à sua penosa moléstia deu novo pasto/ dilacerou os seus próprios membros e pôs-se a arrancá-los/ mordendo-se o desgraçado a si mesmo para se nutrir do seu próprio corpo, mutilando-o”. Assim termina o relato de Ovídio acerca de um dos mitos tipicamente gregos que, realça Anselm Jappe, evocam a húbris – desmesura resultante da cegueira e do orgulho ímpio –, a qual acaba por provocar a némesis, ou seja, o castigo divino a que foram sujeitos, entre outros: Prometeu (o que sofreu agrilhoado até Hércules o salvar); Ícaro (o das asas que o Sol queimou, fazendo-o despenhar-se e afogar-se no mar Egeu); Belerofonte (que matou a Quimera montado no Pégaso); Tântalo (“filho da mãe” que roubava manjares e esquartejou o próprio filho para o comer num banquete, e que acabou mergulhado até ao pescoço, tão perto mas tão longe da água que nem conseguia bebê-la, e dos frutos que nem conseguia comê-los, num verdadeiro suplício); Sísifo (considerado o mais astuto de todos os mortais e que acabou condenado na terra dos mortos a empurrar eternamente um pedregulho até ao cume da montanha, o qual, sempre que atingia o cume, rolava de novo para o sopé); Níobe (filha de Tântalo e mãe de 14 filhos, que insultou a deusa Leto por só ter dois, mas ainda assim ser objecto de culto, o que desencadeou a fúria divina, que matou com 14 flechas os 14 filhos de Níobe, entretanto transformada numa rocha quando ainda chorava os seus filhos mortos e cujas lágrimas se tornaram uma nascente).

É impressionante a actualidade de vários mitos gregos, se os considerarmos como metáforas de actos humanos, sobretudo de actos de quem detém qualquer poder e o exerce abusivamente, com arrogância e desprezo pelos outros, como são, por exemplo, os casos das ditaduras e dos sistemas totalitários (estalinistas, maoistas e congéneres), mas também das sociedades democráticas convertidas à ideologia do “capitalismo selvagem e autofágico”, que vão sendo ciclicamente dilaceradas por crises económicas e financeiras que aumentam o fosso que separa os poucos que são ricos ou muito ricos dos milhões que se julgam remediados e, sobretudo, dos biliões que são pobres e se vão tornando cada vez mais pobres.

Mais impressionante ainda é a actualidade do mito de Erisícton, apesar de muito menos conhecido do que os outros mitos gregos. Podia mesmo ser, inclusive, uma espécie de referente do pensamento ecológico, porque, como muito bem salienta Anselm Jappe, está lá tudo: “a violação da natureza no que esta tem de mais belo – e de mais sagrado para os habitantes originários daquelas terras –, para dela se extraírem materiais de construção destinados à edificação de lugares do poder”. O que, aliás, também se aplica “aos insanos indivíduos que hoje destroem a floresta amazónica”. É que a fome de Erisícton nada tem de natural, por isso mesmo, nada de natural a poderá acalmar. Trata-se de “uma fome abstracta e quantitativa que nunca será saciada”. A tentativa desesperada de a acalmar leva-o a consumir, em vão, mais e mais alimentos bem concretos, destruindo-os e assim privando deles quem deles mais necessita. Como escreve Anselm Jappe: “O mito antecipa assim, de forma extraordinária, a lógica do valor, da mercadoria e do dinheiro”.

Toda e qualquer produção que visa satisfazer necessidades concretas é limitada pela própria natureza dessas necessidades, retomando o seu ciclo praticamente ao mesmo nível. Pelo contrário, a produção de valor mercantil, representada pelo dinheiro, é ilimitada. A “fome” de dinheiro nunca se extingue porque “é abstracta, é vazia de conteúdo”. “A fruição é para ela um meio, não um fim”. A acumulação de valor mercantil e, portanto, de dinheiro não se esgota quando a “fome” é saciada: “parte de novo para um novo ciclo alargado”. Como diz Ovídio a propósito da fome insaciável de Erisícton: “Rodeado de iguarias, procura outras iguarias”. É um mito que não nos fala apenas da devastação da natureza e da injustiça social. Fala-nos também do carácter abstracto e fetichista da lógica mercantil e dos seus efeitos demolidores e autodestruidores. Acaba no autoconsumo. É autofágico.

Os que me leram até aqui hão-de perguntar-me: “E o que é feito dos camionistas do dr. Pardal, que citou no início deste texto?” Talvez se mantenham na sua greve ilimitada, infindável, insaciável, quando o texto for publicado, ou talvez não. Nunca se sabe as voltas que este mundo dará. Mas o certo é que me serviram de óptimo pretexto para expor, em síntese, um fantástico mito grego e as ideias que, a partir dele, Anselm Jappe foi desenvolvendo no seu magnífico ensaio. Em todo o caso, o dr. Pardal não foi esquecido. Fez-me reler o incrível primeiro parágrafo de um dos melhores romances de Don DeLillo – Great Jones Street (1973) – publicado entre nós quase 40 anos depois (Relógio d’Água Editores, Abril de 2012).

O parágrafo é extenso, por isso vai aos bochechos. Arranca assim: “A fama requer todo o tipo de excessos. Refiro-me à verdadeira fama, um néon devorador, e não ao sombrio renome de estadistas apagados ou de reis insignificantes. Refiro-me a longas viagens num espaço cinzento. Refiro-me a perigos, ao gume do vazio, e à circunstância de um homem transmitir um terror erótico aos sonhos da república”. A meio, pode ler-se: “Ainda que meio louco, esse homem é absorvido pela loucura geral do público; ainda que inteiramente racional, qual burocrata no inferno, qual génio secreto da sobrevivência, ele tem a certeza de ir ser destruído pelo desprezo da massa pelos sobreviventes”. E remata: “Talvez a única lei natural associada à verdadeira fama seja a obrigatoriedade, para o homem famoso, de um dia destes se suicidar”. Atenção, dr. Pardal: isto não é para ser levado à letra! Don DeLillo não estava a escrever para camionistas de matérias perigosas em greve. Queria tão-só que percebêssemos que também ele tinha sido um herói do rock’n’roll…

 

Escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990