Por esta altura, já está longe de ser uma novidade: mais uma vez, vitórias norte-americanas ficaram marcadas por gestos de protesto contra Donald Trump, claramente um dos Presidentes dos Estados Unidos que menos consenso gerou nas últimas décadas. As imagens que estão a correr mundo reportam-se à ação de Race Imboden, esgrimista, mas Gwen Berry, vencedora no lançamento do martelo, teve atitude semelhante, embora com gesto diferente.
Imboden terá sido o mais marcante, também pelo facto de ter recorrido às redes sociais para explicar a sua intenção com o gesto que protagonizou na sexta-feira, após receber a medalha de ouro conquistada pela equipa de esgrima nos Jogos Pan-Americanos, que estão a decorrer em Lima, Peru. Enquanto Gerek Meinhardt e Nick Itkin ficaram de pé a ouvir o hino nacional dos Estados Unidos, Race Imboden ajoelhou-se. Pouco depois, foi ao Twitter explicar porquê.
“Temos de pedir mudanças. Esta semana tive a honra de representar os Estados Unidos nos Jogos Pan-Americanos, levando para casa as medalhas de ouro e bronze. O meu orgulho, no entanto, foi diminuído pelas muitas falhas do país que trago no meu coração. O racismo, a lei das armas, os maus-tratos a imigrantes e um presidente que espalha ódio estão no topo de uma longa lista. Decidi sacrificar o meu momento no lugar mais alto do pódio para chamar a atenção para assuntos que acredito que têm de ser resolvidos. Encorajo todos a usarem as plataformas ao vosso dispor em prol do empoderamento e da mudança”, escreveu Imboden, um conceituadíssimo esgrimista de 26 anos (segundo no ranking mundial na vertente de florete, fazia parte da equipa que se sagrou campeã do mundo em julho e soma 12 medalhas de ouro, uma de prata e duas de bronze em Jogos Pan-Americanos, tendo conquistado ainda o bronze nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016), mas também modelo profissional.
De Tommie Smith a Kaepernick Esta nem foi a primeira vez que Race Imboden tomou uma atitude semelhante. Nos Mundiais de 2017, no Egito, terá feito o mesmo gesto, embora nessa altura o protesto não se tenha tornado viral. Agora, porém, pode vir a sofrer duras sanções – pelo menos tendo em conta as declarações de Mark Jones, porta-voz do Comité Olímpico e Paraolímpico norte-americano. “Respeitamos o direito de Race a expressar os seus pontos de vista, mas estamos desapontados por ele não ter honrado o compromisso feito com a organização e connosco”, realçou o dirigente, lembrando que Imboden teria aceitado, antes do início do evento, um acordo para se abster de quaisquer manifestações políticas durante o mesmo.
O gesto de Imboden – que muito provavelmente irá representar os Estados Unidos nos Jogos Olímpicos de Tóquio, no próximo verão – surgiu cinco dias depois do massacre num supermercado do Texas, com Patrick Crusius a assassinar 22 pessoas enquanto gritava mensagens de apoio a Donald Trump, dizendo estar a combater a “invasão hispânica do Texas” e ser “contra a mistura de raças”. No sábado, após vencer a prova de lançamento do martelo, Gwen Berry fechou os olhos e ergueu o punho fechado, imitando o gesto icónico dos atletas Tommie Smith e John Carlos após a prova de 200 metros dos Jogos Olímpicos do México, em 1968. “É demasiado grave para não dizermos nada”, declarou ao USA Today a lançadora de 30 anos.
Há 51 anos, Tommie Smith venceu a medalha de ouro para os Estados Unidos. Enquanto o hino norte-americano tocava no estádio, o atleta, juntamente com o compatriota John Carlos (medalha de bronze), levantou o braço direito com o punho cerrado e a mão coberta por uma luva negra, em sinal de protesto contra a discriminação racial, a brutalidade policial e a desigualdade para com a comunidade afro-americana. O gesto, que ficou para a história como a “saudação do poder negro”, inspirou gerações e voltou à ordem do dia em 2016, quando Colin Kaepernick, quarterback dos San Francisco 49ers (futebol americano), se ajoelhou durante o hino nacional numa partida de pré-época.
“Ele estava de joelhos e eu de pé, mas os nossos gestos representaram a mesma coisa”, afirmou Tommie Smith. Kaepernick estava, de facto, a protestar contra a violência policial em relação aos afro-americanos e acabou por ser seguido por vários outros jogadores. No seu estilo habitual, Donald Trump, recém-eleito Presidente dos Estados Unidos, insultou os atletas que o fizeram e pediu à organização da NFL que os despedisse a todos. Curiosamente, ou talvez não, Kaepernick, de 31 anos, está sem equipa desde então – a nível público, apareceu apenas numa campanha da Nike em 2018, surgindo numa fotografia a preto–e-branco com a legenda “Believe in something, even if it means sacrificing everything”, que se pode traduzir por “acredita em alguma coisa, mesmo que isso signifique sacrificar tudo”.
O próprio Tommie Smith conta as represálias que sofreu, estabelecendo semelhanças com o caso de Kaepernick. “Fui, tal como o John Carlos, impedido de participar em competições internacionais, o que acabou com a minha carreira de velocista. Quando voltámos aos Estados Unidos fomos votados ao ostracismo, não apenas por americanos brancos mas também por muitos negros, que temiam ser associados a nós. Recebemos mensagens de ódio e ameaças de morte. Cheguei a receber uma carta com uma passagem falsa de avião a dizer-me para voltar para África”, relatou no ano passado, em entrevista ao jornalista Tik Rook, aquele que um dia foi considerado um dos homens mais rápidos do planeta, chegando a deter 13 recordes mundiais.
Curiosamente, Smith recusa o epíteto de fundador do movimento Black Power. “Nunca me concentrei apenas nos negros, não queria que a minha manifestação fosse sobre apenas um tipo de pessoa, mas sim uma questão de direitos humanos em geral”, salientou, ele que em 2005 viu a Universidade Estadual de San Jose, Califórnia, onde estudou e começou a competir, erguer uma estátua dedicada a si e a John Carlos e atribuir-lhe o doutoramento honoris causa.
Lebron e a honra que deixou de o ser Desde Colin Kaepernick, muitos foram os atletas dos mais variados desportos a manifestar-se publicamente contra o Presidente dos Estados Unidos antes de Race Imboden e Gwen Berry. Logo em 2017, ficou para a história a recusa dos Golden State Warriors em serem recebidos na Casa Branca após o triunfo no campeonato da NBA, agudizada por uma troca de palavras entre Trump e Stephen Curry, estrela maior dos Warriors – o próprio LeBron James, um dos maiores nomes da história do basquetebol norte-americano, saiu em defesa do colega de profissão. “Ir à Casa Branca era uma honra até você ter aparecido”, escreveu o King no Twitter, a rede social predileta do Presidente norte-americano.
Em 2018, os Warriors voltaram a rejeitar um eventual convite (que nunca surgiu) e, este ano, Trump ainda deixou no ar a hipótese de convidar os Toronto Raptors, apesar de a franquia que venceu a última edição da NBA estar sediada no Canadá. Alguns elementos da equipa (como o extremo Danny Green), porém, fizeram desde logo questão de garantir que dificilmente aceitariam o convite, caso este viesse a surgir de facto.
Recentemente, o tema voltou à ordem do dia devido à seleção de futebol feminino – nomeadamente pela ação da sua capitã, Megan Rapinoe. Homossexual assumida desde 2012, a estrela da equipa norte-americana que se sagrou bicampeã do mundo nunca se coibiu de criticar Donald Trump e desde cedo deixou bem patente a recusa da equipa em ser recebida na residência presidencial.
“Eu não irei. E creio que a restante equipa, com quem falei explicitamente sobre isso, também não. Era uma oportunidade para a administração Trump exibir a seleção e acho que não faz sentido para nós. Não consigo imaginar que alguma das minhas colegas queira estar nessa situação”, frisou a melhor jogadora e marcadora do Mundial realizado em França nos passados meses de junho e julho.
Estas declarações, completadas ainda com uma mensagem diretamente dirigida a Trump – “A sua mensagem exclui pessoas. Você exclui-me. Você exclui pessoas que são importantes para mim” –, aconteceram já depois da vitória na final. Dias antes, Megan Rapinoe já tinha dito, ainda de forma mais perentória, não querer ser recebida “na merda da Casa Branca”, espoletando uma reação do Presidente norte-americano: “Sou um grande fã da seleção americana e do futebol feminino, mas a Megan devia ganhar primeiro antes de falar! Acabe o seu trabalho! Ainda não convidámos a Megan nem a sua equipa, mas agora estou a convidar a equipa, quer ganhe ou perca. A Megan não deve desrespeitar o país, a Casa Branca ou a bandeira, especialmente depois de tudo o que fizemos por ela e pela equipa. Tenha orgulho na bandeira que representa. Os EUA são fantásticos!”
No desfile que teve lugar nas ruas de Manhattan após o regresso da seleção feminina aos Estados Unidos, Megan Rapinoe liderou uma festa marcada por cânticos entoados por dezenas de milhares de pessoas a pedir igualdade no tratamento a atletas femininos e masculinos, mas também em relação à comunidade LGBT, duas das iniciativas pelas quais a capitã dos Estados Unidos mais deu a cara – algumas jogadoras recorreram mesmo ao tribunal para exigir pagamentos e regalias iguais aos homens, cujo sucesso nas competições internacionais fica muito aquém daquele alcançado pelas mulheres.
Campeã olímpica em 2012 e bicampeã mundial, a atacante dos Seattle Reign, de 34 anos, não canta o hino nacional. “Como uma americana gay, eu sei o que significa olhar para esta bandeira e não a ter como símbolo de proteção à minha liberdade. É algo pequeno que eu posso fazer e planeio continuar a fazer para tentar fomentar uma discussão importante sobre isso. Disponho de uma plataforma tão poderosa que interessa a milhões de pessoas do mundo inteiro e faço parte de uma equipa que recebe uma grande cobertura dos média. Ficar calada seria egoísta. Acho que nunca mais vou colocar a mão no peito e cantar o hino nacional”, dizia recentemente Rapinoe, que nalgumas sondagens já aparece à frente de Trump numa eventual corrida… à Presidência dos Estados Unidos.