Arábia Saudita.  Mulheres já podem viajar mas a repressão continua

Arábia Saudita. Mulheres já podem viajar mas a repressão continua


Muito do “sistema de guardiões” continua de pé, nem que seja nos tribunais, que seguem a lei islâmica. Bin Salman quer lavar a imagem do seu reino para atrair investimento.


A Arábia Saudita anunciou, na passada semana, a diminuição das restrições do chamado “sistema de guardiões”, que obriga as mulheres sauditas a pedir autorização de um familiar masculino – o marido, o pai, um irmão, ou até um filho – para as tarefas mais básicas do quotidiano. “Estas restrições fazem com que as mulheres sejam equiparadas com menores”, explica ao i Lynn Malouf, analista da Amnistia Internacional para a Arábia Saudita. Segundo o decreto real, as sauditas deixarão de precisar de autorização para viver sozinhas, fazer um passaporte, viajar ou procurar trabalho.

O anúncio foi feito no Twitter pela embaixadora saudita nos Estados Unidos, a princesa Reema Bandar al Saud – que não fez nenhuma menção às ativistas dos direitos das mulheres presas no reino. Uma delas é Loujain al Hathloul (ver texto ao lado), uma das principais organizadoras da campanha pelo direito das mulheres a conduzir – algo conseguido este ano.

O cativeiro das ativistas, juntamente com o autoritário sistema político na Arábia Saudita, torna clara a “absoluta falta de liberdade de expressão e incapacidade de qualquer setor da sociedade em participar nas decisões tomadas”, salienta Adam Coogle, investigador para o Médio Oriente da Human Rights Watch. O investigador considera as reformas “muito boas, até monumentais, pelo menos a nível das leis”. Mas alerta para as dificuldades de implementação das medidas, como é o caso das novas leis contra a discriminação laboral, que exigem igualdade salarial e impedem empregadores de requerer a autorização de um guardião masculino.

“Algumas das regras são fáceis de aplicar pelo Estado. Se removes o requisito de um guardião masculino para a mulher obter um passaporte, basta deixar qualquer pessoa fazer o pedido e obter um passaporte. O mesmo se passa com a retirada das restrições às viagens, é bastante direto. Muito mais complicado é aplicar as regulações contra a discriminação laboral. Isso requer dar seguimento de forma intensa, garantindo que quem viola as regras é punido”, explica.

Também foi revogada a lei que obriga uma mulher a viver com o seu marido. “Mas o que acontece se um homem levar a mulher a tribunal por desobediência conjugal?”, questiona Coogle, notando que “os tribunais sauditas regem-se por conceitos não-codificados, vindos da sharia (lei islâmica). Não é claro como juízes individuais vão interpretar e aplicar as novas regras”.

Além disso, muitas das restrições do sistema de guardiões ainda estão em vigor. “As reformas não permitem de maneira alguma às mulheres casar sem o consentimento de um guardião. Não lhes permitem ter custódia dos seus filhos, apenas se o marido morrer”, afirma Malouf. As mulheres sauditas só podem divorciar-se com consentimento do marido, ou caso provem em tribunal terem sido vítimas de maus tratos. Já os homens, segundo a sharia, têm direito a divorciar-se sem justificação e de imediato – até por telemóvel – bastando dizer três vezes talaq, ou “repudio-te”, em árabe.

“As mulheres até precisam de autorização de um guardião para sair de centro de acolhimento para violência doméstica. Mesmo no caso do guardião ser o responsável pelos abusos”, refere a especialista da Amnistia.

Limpeza de imagem Uma imagem recorrente na Arábia Saudita costumava ser a temida polícia religiosa, encarregue, por exemplo, de escrutinar os trajes das mulheres. Contudo, “pelo menos nas maiores cidades, a polícia religiosa é muito menos vista. Os incidentes de perseguição pela polícia religiosa diminuíram. Ainda acontecem, mas eles já não têm poder de prender pessoas. As suas ameaças não têm o mesmo peso”, afirma Coogle. Esta espécie de polícia estava ligada aos clérigos mais conservadores, “que foram perseguidos ou cooptados” pelo regime do príncipe herdeiro, Mohammed bin Salman. “Ele afastou brutalmente qualquer pessoa que pudesse opor-se às suas políticas”, salienta o investigador da Human Rights Watch.

O objetivo último? “É económico, querem transformar a economia saudita. Essa é a maior ameaça aos olhos deles, precisam da estabilidade de um país que está a avançar. A sua economia é baseada no petróleo e foi muito afetada pela baixa do preço do barril. Precisam de diversificar a economia, desenvolver bons empregos para os jovens sauditas, muitos dos quais são qualificados mas estão desempregados”, esclarece Coogle, referindo-se ao plano Saudi Vision 2030, de Mohammed bin Salman. “Para tal, ele precisa de abrir o país ao investimento estrangeiro. Mas, para muitos investidores, enviar dinheiro para a Arábia Saudita é arriscado, devido ao seu registo de direitos humanos” – que pode trazer má publicidade.

“Daí as manobras de relações públicas, que apresentam a imagem de que a Arábia Saudita mudou. Não há melhor maneira para tal que reformas nos direitos das mulheres”, assegura o especialista da Human Rights Watch. “É um esforço para melhor a imagem no mundo exterior”, concorda Malouf. “Querem salvar a sua reputação, especialmente após o homicídio de [Jamal] Khashoggi”, reforçou, fazendo referência ao jornalista saudita assassinado na embaixada do reino em Istambul. Alegadamente, sob ordens do próprio Bin Salman.