Algumas ilusões sobre as férias e um olho aberto


As férias – que são muito importantes, e para muita coisa – são apenas uma pausa no trabalho, não são uma pausa na vida, e esta “pequenina” precisão trava muito as suas alegadas propriedades milagrosas.


Desculpem destoar um pouco do clima reinante por estes dias, dando a entender – ou querendo mesmo convencer-nos – que as férias proporcionam prodigiosa felicidade e podem mesmo ser o momento da solução para todos os problemas. A avaliar por capas, artigos e programas, as férias restaurariam, curariam, reconciliariam, fariam renascer e por aí adiante. Ora, tenho as minhas dúvidas (para não dizer que são certezas), porque as férias – que são muito importantes, e para muita coisa – são apenas uma pausa no trabalho, não são uma pausa na vida. E esta “pequenina” precisão trava muito as alegadas propriedades milagrosas das férias, que nos dão tempo, descanso, partilha, viagem, aventura e muitas outras coisas fundamentais, sim senhor, mas não curam – e, aliás, às vezes destapam ou agravam – coisas sérias que não se resolvem com pausas no trabalho. Coisas que têm que ver connosco mesmos, e/ou com as nossas relações, com os nossos afetos, emoções, feridas, et cetera. É que tudo isso vai connosco nas férias, e não fica em pausa, e vai, aliás, de uma forma mais intensa, sem distrações, sem desculpas, sem álibis.

Se, para usar uma expressão de Cruzeiro Seixas, a vida de cada um for uma ferida que dança (o que, aliás, já é bem bom, porque sempre é capaz de dançar), ela, nas férias, não deixa de ser ferida, ainda que possa dançar mais um pouco. Se, por exemplo, num casal, e recorrendo ao poema de Eugénio de Andrade, já se gastaram as palavras, as férias não as trazem de volta e até tornam mais gritantes os silêncios. E se outras coisas importantes faltam ou minguam num casal (diálogo, carinho, cumplicidade, sexo, desejo, comunicação, abertura), das duas, uma: ou o problema é passageiro e tem que ver mesmo com o peso dos dias, e as férias, aí, podem ajudar ou resolver, ou então talvez não seja o caso (e apostaria que, na maioria das vezes, não é), e nesse caso o peso dos dias foi apenas distração, desculpa ou novelo ao longo do ano, e as férias não curam nada, antes podem pôr mais a nu, ao ponto mesmo de tornar tudo evidente e/ou insuportável. E poderia dar muitos mais exemplos sobre as malogradas capacidades alquímicas das férias, que não só não transformam a matéria em oiro, se oiro não houver, como podem levar mesmo a que se revele irremediavelmente a pobreza da matéria. Usando as palavras de Clarice Lispector, em A Paixão Segundo G. H. – livro onde uma singela barata pode ser o catalisador de todos os fantasmas, embora não sobre as férias, mas sobre o fundo de nós -, as férias até podem servir para descobrir que “chamava de amor a minha esperança de amor”. O que não retira importância às férias, antes pelo contrário, mas não é no caminho da ilusão do milagre, antes no rastro da verdade das coisas. E com um olho aberto, como no título da magnífica canção de Elza Soares (a que, aliás, voltarei, sobre outro assunto). Aberto o olho, poderemos ver melhor o que há e o que não há, o que é e o que não é, realmente. E decidir (ou não). O que se quiser e, sobretudo, aquilo de que se for capaz. Boas férias.

Escreve quinzenalmente à sexta-feira

Algumas ilusões sobre as férias e um olho aberto


As férias - que são muito importantes, e para muita coisa - são apenas uma pausa no trabalho, não são uma pausa na vida, e esta “pequenina” precisão trava muito as suas alegadas propriedades milagrosas.


Desculpem destoar um pouco do clima reinante por estes dias, dando a entender – ou querendo mesmo convencer-nos – que as férias proporcionam prodigiosa felicidade e podem mesmo ser o momento da solução para todos os problemas. A avaliar por capas, artigos e programas, as férias restaurariam, curariam, reconciliariam, fariam renascer e por aí adiante. Ora, tenho as minhas dúvidas (para não dizer que são certezas), porque as férias – que são muito importantes, e para muita coisa – são apenas uma pausa no trabalho, não são uma pausa na vida. E esta “pequenina” precisão trava muito as alegadas propriedades milagrosas das férias, que nos dão tempo, descanso, partilha, viagem, aventura e muitas outras coisas fundamentais, sim senhor, mas não curam – e, aliás, às vezes destapam ou agravam – coisas sérias que não se resolvem com pausas no trabalho. Coisas que têm que ver connosco mesmos, e/ou com as nossas relações, com os nossos afetos, emoções, feridas, et cetera. É que tudo isso vai connosco nas férias, e não fica em pausa, e vai, aliás, de uma forma mais intensa, sem distrações, sem desculpas, sem álibis.

Se, para usar uma expressão de Cruzeiro Seixas, a vida de cada um for uma ferida que dança (o que, aliás, já é bem bom, porque sempre é capaz de dançar), ela, nas férias, não deixa de ser ferida, ainda que possa dançar mais um pouco. Se, por exemplo, num casal, e recorrendo ao poema de Eugénio de Andrade, já se gastaram as palavras, as férias não as trazem de volta e até tornam mais gritantes os silêncios. E se outras coisas importantes faltam ou minguam num casal (diálogo, carinho, cumplicidade, sexo, desejo, comunicação, abertura), das duas, uma: ou o problema é passageiro e tem que ver mesmo com o peso dos dias, e as férias, aí, podem ajudar ou resolver, ou então talvez não seja o caso (e apostaria que, na maioria das vezes, não é), e nesse caso o peso dos dias foi apenas distração, desculpa ou novelo ao longo do ano, e as férias não curam nada, antes podem pôr mais a nu, ao ponto mesmo de tornar tudo evidente e/ou insuportável. E poderia dar muitos mais exemplos sobre as malogradas capacidades alquímicas das férias, que não só não transformam a matéria em oiro, se oiro não houver, como podem levar mesmo a que se revele irremediavelmente a pobreza da matéria. Usando as palavras de Clarice Lispector, em A Paixão Segundo G. H. – livro onde uma singela barata pode ser o catalisador de todos os fantasmas, embora não sobre as férias, mas sobre o fundo de nós -, as férias até podem servir para descobrir que “chamava de amor a minha esperança de amor”. O que não retira importância às férias, antes pelo contrário, mas não é no caminho da ilusão do milagre, antes no rastro da verdade das coisas. E com um olho aberto, como no título da magnífica canção de Elza Soares (a que, aliás, voltarei, sobre outro assunto). Aberto o olho, poderemos ver melhor o que há e o que não há, o que é e o que não é, realmente. E decidir (ou não). O que se quiser e, sobretudo, aquilo de que se for capaz. Boas férias.

Escreve quinzenalmente à sexta-feira