“A lei de incompatibilidades e impedimentos dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos tem de ser aplicada com todo o rigor e, neste caso concreto, parece que há nitidamente um desvio”, disse ao i o constitucionalista e professor catedrático jubilado Jorge Miranda, a propósito do pedido de esclarecimento do Governo à Procuradoria-Geral da República (PGR) sobre a imposição da sanção de demissão de políticos quando um familiar dos mesmos realiza negócios com entidades públicas. Este pedido de clarificação vem na sequência da informação de que uma das empresas do filho de Artur Neves, secretário de Estado da Proteção Civil, celebrou com o Estado três contratos – dois com a Universidade do Porto e um com a Câmara Municipal de Vila Franca de Xira. No total, a empresa de Nuno Neves fez negócios com as referidas entidades públicas no valor de dois milhões de euros.
Para o Governo, a não demissão imediata de um governante, prevista no diploma em vigor, não levanta dúvidas, tendo em conta que a ação é cometida por terceiros. “Como é que alguém pode ser responsabilizado, ética ou legalmente, por atos de entidades sobre as quais não detém qualquer poder de controlo e que entre si contratam nos termos das regras de contratação pública, sem que neles tenha tido a menor intervenção”, questiona o Governo ao órgão consultivo da PGR. Desta forma, o Governo também pretende ter uma resposta para avaliar outros casos de negócios de familiares de políticos com o Estado (ver “outros casos” no texto ao lado).
Mas, se para o Governo de António Costa a lei de incompatibilidades “suscita dúvidas”, para o “pai” da Constituição da República a questão é clara.“Tem de haver uma incompatibilidade com empresas de familiares e esta lei deve ser escrupulosamente aplicada, para evitar nepotismo, desvios e favoritismos que são nocivos ao funcionamento da democracia”, argumentou Jorge Miranda, acrescentando que se trata de “uma questão de ética republicana em prol do bom funcionamento das instituições”.
Sobre as alterações ao regime das incompatibilidades – que passam a permitir que familiares de governantes possam realizar contratos com Estado a partir da próxima legislatura – Jorge Miranda mostrou-se contra a nova lei: “Não concordo, devia ser mais rigorosa”.
Uma nova lei. Segundo o diploma que se encontra em vigor, os familiares de políticos “ascendentes e descendentes em qualquer grau e os colaterais até ao 2.º grau” não podem, tal como qualquer “titular de cargo político ou por alto cargo público”, celebrar contratos com o Estado ou entidades públicas “através de empresas em que tenham uma percentagem de participação igual ou superior a 10%”.
O incumprimento desta lei estabelece como consequência a demissão do político em causa e a nulidade dos contratos celebrados.
Ou seja, tal como defendeu, na última edição do i, João Paulo Batalha, presidente da Associação Integridade e Transparência, no caso do secretário de Estado da Proteção Civil “há uma violação flagrante de uma lei que é clara” e essa “violação é punível com a demissão” de Artur Neves. O CDS também já reagiu e desafiou, ontem, o primeiro-ministro a “parar de se esconder atrás dos ministros” e de “pareceres jurídicos” e dar explicações sobre o caso.
Na outra frente, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, saiu em defesa de António Costa e apoiou a não demissão do secretário de Estado. O ministro disse, também durante a tarde desta quarta-feira, que o regime de incompatibilidades deve ter uma “interpretação razoável” e que a situação de Artur Neves “é um caso típico que mostra bem o absurdo de uma interpretação literal da lei que esquecesse o princípio constitucional da proporcionalidade”, referiu ontem aos jornalistas à margem de uma cerimónia em Lisboa. O ministro assegurou ainda que toda esta polémica não fragiliza o Governo “de forma alguma”.
Além do argumento da interpretação literal do diploma ser ‘absurda’, esta lei raramente é aplicada devido às dificuldades na área da fiscalização. Assim sendo, o Governo destacou também que a norma não é cumprida e que nem há jurisprudência sobre a matéria.
Contudo, toda a controvérsia que possa ter sido gerada em torno da demissão do secretário de Estado ou de outros eventuais políticos que possam estar envolvidos em cenários semelhantes tem os dias contados. A realidade é que esta norma irá mudar a partir do primeiro dia da próxima legislatura, com a entrada em vigor de uma nova lei de incompatibilidades, que, acima de tudo, é menos restritiva. Este diploma foi aprovado na Comissão da Transparência com os votos favoráveis do PS, PSD, BE e PCP e, ontem, já foi publicado em Diário da República. Quais são as alterações? Primeiro, o impedimento passa apenas a ser aplicado a empresas que sejam detidas “conjuntamente” por um político e os seus familiares. Isto é, sociedades que pertençam apenas a familiares de políticos estão livres para fazerem os negócios que quiserem com o Estado. Os limites ficam apenas para os titulares de cargos políticos ou altos cargos públicos que detenham mais de 10% ou 50.000 euros de capital de uma sociedade. Contudo, em nome da transparência, quando forem firmados contratos com familiares, estes devem descrever a relação quando publicados no portal online dos contratos públicos (BASE).
A nova lei prevê ainda a possibilidade de um político alienar ou suspender a sua participação numa empresa.