O efémero exercício das lideranças políticas de circunstância


A liderança de António Costa é de circunstância, sustentada no formalismo simbólico da convergência das esquerdas, mas com exíguas marcas estruturais


“Eu sou eu e minha circunstância, e se não a salvo a ela, não me salvo a mim”

José Ortega y Gasset

As instituições são muito mais do que uma mera circunstância. Têm, ou devem ter, valores, princípios e práticas em sintonia com esse acervo patrimonial que perfaz o essencial da sua identidade. Têm, ou podem ter, matrizes de base ideológica: à esquerda, ligadas à justiça social; à direita, a uma lógica liberal. Sem prejuízo dos ajustamentos decorrentes da conjuntura e da interação com as dinâmicas geradas nas comunidades e no contexto da globalização, as lideranças podem ser meramente de circunstância ou ser estruturantes no sentido de que, no respeito pelo acervo identitário, produzem impulsos estruturais que perduram.

Há quem faça da circunstância toda uma oportunidade para a afirmação pessoal, sem se preocupar com os impactos na identidade da instituição que em determinado momento lidera, como se estivesse a gerir a sua casa.

A atual solução governativa é o resultado de uma circunstância. O PS não ganhou as legislativas de 2015, mas a esquerda perfazia maioria no Parlamento para impor uma convergência de interesses políticos e eleitorais, numa lógica de concretização de medidas positivas para as pessoas, de realização de despesa sustentada pela carga fiscal resultante do consumo e da dinamização da economia e pelas poupanças conseguidas com a Segurança Social. Quatro anos depois, continuamos a crer que a solução é mais um impulso de sobrevivência política de uma liderança do que o resultado de uma expressão do acervo patrimonial do Partido Socialista. Não houve convergência na questão europeia, há sinais de intolerância em relação à diferença e, sobretudo, adotou muitas soluções que são insustentáveis, amiúde assentes em narrativas sem nexo e sem consequência.

A liderança de António Costa é de circunstância, sustentada no formalismo simbólico da convergência das esquerdas, mas com exíguas marcas estruturais. Mesmo o tema das “contas certas”, importante cá dentro por razões mitológicas da esquerda e lá fora por serem expressão de um país que aparentemente se governa e se deixa governar, falha no teste do algodão quando se contabiliza o investimento público realizado, o estado dos serviços públicos e a perceção de que, mesmo na escola pública e no Serviço Nacional de Saúde, fez-se menos do que se devia. Cumpriu-se na circunstância, faltou tratar das questões da estrutura, fundamentais para que tudo seja perene.

Falta verdade, valores e princípios. Falta noção de que o tempo da circunstância é sempre efémero perante a grandeza do acervo patrimonial, que no caso vertente é de respeito pela diversidade democrática, de tolerância e de sustentação de convicções matriciais. Mas se, no PS, as regras se configuram à imagem da liderança partidária e política, da corte de circunstância e das putativas lideranças sucessoras, no PSD, Rui Rio ensaia também um exercício de circunstância em que os egos e os problemas pessoais mal resolvidos se sobrepõem ao acervo patrimonial. Em ambos, talvez pelo perfil dos egos e dos traumas mal resolvidos, a depuração dos divergentes é feita de forma consistente, sustentada e com a anuência geral, como se fosse normal que a circunstância se sobrepusesse ao estrutural. Um, encontrado com a sua essência, outro, perdido no seu labirinto, são expressões de lideranças de circunstância de sinais contrários. Partilham práticas, divergem na eficácia do exercício.

Para a liderança de circunstância é irrelevante se a ação provocará ruturas naqueles que estão mais comprometidos com o acervo patrimonial do que com a subserviência, a acefalia crítica ou as benesses de proximidade à chefia do momento. 

Uma liderança de circunstância é sempre uma oportunidade para exercitar convicções, coerências e avaliações sobre o nível de desvirtuação do acervo patrimonial de uma instituição. Para questionar se o desvio da circunstância é de uma dimensão tal que coloque em causa o compromisso individual com essa instituição ou se é tolerável, sempre sem prescindir do acervo democrático que esteve na base da sua fundação e que integra o essencial de um Estado de direito democrático.

A circunstância passa. O problema é se a cultura da circunstância se instala e subverte a matriz identitária. A governação dos últimos anos e os tiques enunciados em diversas circunstâncias vão nesse sentido, um caminho apenas tolerado pela comunidade do tempo digital enquanto houver dinheiro no bolso e a alternativa política for débil.

O inacreditável caso das golas distribuídas no âmbito do programa “Aldeia Segura, Pessoas Seguras” é sintomático da degradação e desse despudorado caminho – incompetência, opções incompreensíveis e falta de condução política dos processos e das circunstâncias. A situação irresponsável e indutora de uma perceção de proteção, depois de denunciada, era de fácil resolução mediática. “O programa das aldeias é importante no quadro do combate ao risco de incêndio rural. A situação nunca deveria ter acontecido, vamos investigar e vamos substituir o material inflamável.” Mas não, aquilo a que se assistiu foi a um desnorte total, com diversas versões e demasiados engasgos.

Sem solidez na gestão da circunstância, por vezes dada pelo compromisso com o tal acervo patrimonial, corre-se o risco de a circunstância tratar das lideranças de circunstância, sejam elas mais ou menos habilidosas. É da vida.

NOTAS FINAIS

FORMIGA. Nenhum abuso de posição quase dominante deveria poder capturar o funcionamento da nação num momento crucial para as pessoas e para o país. Sendo legítima a luta por melhores condições laborais e de remuneração, ao Estado cumpre a salvaguarda do interesse geral. Os camionistas estão a aproveitar-se do momento pré-eleitoral, e esta circunstância pode significar a erradicação da hipótese de maioria absoluta tão desejada pela liderança de circunstância.

CIGARRA. É delicioso assistir às estratégias de posicionamento mediático e comercial de algumas associações ambientalistas e de defesa do consumidor, quantas vezes em convergência com os interesses dos poderes.

Escreve à segunda-feira 

O efémero exercício das lideranças políticas de circunstância


A liderança de António Costa é de circunstância, sustentada no formalismo simbólico da convergência das esquerdas, mas com exíguas marcas estruturais


“Eu sou eu e minha circunstância, e se não a salvo a ela, não me salvo a mim”

José Ortega y Gasset

As instituições são muito mais do que uma mera circunstância. Têm, ou devem ter, valores, princípios e práticas em sintonia com esse acervo patrimonial que perfaz o essencial da sua identidade. Têm, ou podem ter, matrizes de base ideológica: à esquerda, ligadas à justiça social; à direita, a uma lógica liberal. Sem prejuízo dos ajustamentos decorrentes da conjuntura e da interação com as dinâmicas geradas nas comunidades e no contexto da globalização, as lideranças podem ser meramente de circunstância ou ser estruturantes no sentido de que, no respeito pelo acervo identitário, produzem impulsos estruturais que perduram.

Há quem faça da circunstância toda uma oportunidade para a afirmação pessoal, sem se preocupar com os impactos na identidade da instituição que em determinado momento lidera, como se estivesse a gerir a sua casa.

A atual solução governativa é o resultado de uma circunstância. O PS não ganhou as legislativas de 2015, mas a esquerda perfazia maioria no Parlamento para impor uma convergência de interesses políticos e eleitorais, numa lógica de concretização de medidas positivas para as pessoas, de realização de despesa sustentada pela carga fiscal resultante do consumo e da dinamização da economia e pelas poupanças conseguidas com a Segurança Social. Quatro anos depois, continuamos a crer que a solução é mais um impulso de sobrevivência política de uma liderança do que o resultado de uma expressão do acervo patrimonial do Partido Socialista. Não houve convergência na questão europeia, há sinais de intolerância em relação à diferença e, sobretudo, adotou muitas soluções que são insustentáveis, amiúde assentes em narrativas sem nexo e sem consequência.

A liderança de António Costa é de circunstância, sustentada no formalismo simbólico da convergência das esquerdas, mas com exíguas marcas estruturais. Mesmo o tema das “contas certas”, importante cá dentro por razões mitológicas da esquerda e lá fora por serem expressão de um país que aparentemente se governa e se deixa governar, falha no teste do algodão quando se contabiliza o investimento público realizado, o estado dos serviços públicos e a perceção de que, mesmo na escola pública e no Serviço Nacional de Saúde, fez-se menos do que se devia. Cumpriu-se na circunstância, faltou tratar das questões da estrutura, fundamentais para que tudo seja perene.

Falta verdade, valores e princípios. Falta noção de que o tempo da circunstância é sempre efémero perante a grandeza do acervo patrimonial, que no caso vertente é de respeito pela diversidade democrática, de tolerância e de sustentação de convicções matriciais. Mas se, no PS, as regras se configuram à imagem da liderança partidária e política, da corte de circunstância e das putativas lideranças sucessoras, no PSD, Rui Rio ensaia também um exercício de circunstância em que os egos e os problemas pessoais mal resolvidos se sobrepõem ao acervo patrimonial. Em ambos, talvez pelo perfil dos egos e dos traumas mal resolvidos, a depuração dos divergentes é feita de forma consistente, sustentada e com a anuência geral, como se fosse normal que a circunstância se sobrepusesse ao estrutural. Um, encontrado com a sua essência, outro, perdido no seu labirinto, são expressões de lideranças de circunstância de sinais contrários. Partilham práticas, divergem na eficácia do exercício.

Para a liderança de circunstância é irrelevante se a ação provocará ruturas naqueles que estão mais comprometidos com o acervo patrimonial do que com a subserviência, a acefalia crítica ou as benesses de proximidade à chefia do momento. 

Uma liderança de circunstância é sempre uma oportunidade para exercitar convicções, coerências e avaliações sobre o nível de desvirtuação do acervo patrimonial de uma instituição. Para questionar se o desvio da circunstância é de uma dimensão tal que coloque em causa o compromisso individual com essa instituição ou se é tolerável, sempre sem prescindir do acervo democrático que esteve na base da sua fundação e que integra o essencial de um Estado de direito democrático.

A circunstância passa. O problema é se a cultura da circunstância se instala e subverte a matriz identitária. A governação dos últimos anos e os tiques enunciados em diversas circunstâncias vão nesse sentido, um caminho apenas tolerado pela comunidade do tempo digital enquanto houver dinheiro no bolso e a alternativa política for débil.

O inacreditável caso das golas distribuídas no âmbito do programa “Aldeia Segura, Pessoas Seguras” é sintomático da degradação e desse despudorado caminho – incompetência, opções incompreensíveis e falta de condução política dos processos e das circunstâncias. A situação irresponsável e indutora de uma perceção de proteção, depois de denunciada, era de fácil resolução mediática. “O programa das aldeias é importante no quadro do combate ao risco de incêndio rural. A situação nunca deveria ter acontecido, vamos investigar e vamos substituir o material inflamável.” Mas não, aquilo a que se assistiu foi a um desnorte total, com diversas versões e demasiados engasgos.

Sem solidez na gestão da circunstância, por vezes dada pelo compromisso com o tal acervo patrimonial, corre-se o risco de a circunstância tratar das lideranças de circunstância, sejam elas mais ou menos habilidosas. É da vida.

NOTAS FINAIS

FORMIGA. Nenhum abuso de posição quase dominante deveria poder capturar o funcionamento da nação num momento crucial para as pessoas e para o país. Sendo legítima a luta por melhores condições laborais e de remuneração, ao Estado cumpre a salvaguarda do interesse geral. Os camionistas estão a aproveitar-se do momento pré-eleitoral, e esta circunstância pode significar a erradicação da hipótese de maioria absoluta tão desejada pela liderança de circunstância.

CIGARRA. É delicioso assistir às estratégias de posicionamento mediático e comercial de algumas associações ambientalistas e de defesa do consumidor, quantas vezes em convergência com os interesses dos poderes.

Escreve à segunda-feira