“Pode até haver em Portugal outros cantores tão acarinhados como eu. Mas mais do que eu… duvido”. É Tony Carreira que o diz às tantas em Tony. O documentário de Jorge Pelicano que chegou ontem às salas a atravessar toda a carreira do cantor que move multidões de uma forma aparentemente inexplicável. Mas inexplicável apenas para quem não assiste ao fenómeno a partir de dentro. E por aí irá este documentário que o próprio sugeriu ao realizador Jorge Pelicano, que a partir de 2018, quando anunciou que os 30 anos de carreira marcariam também uma pausa por tempo indeterminado, o acompanhou entre essa sua última digressão e um pouco da sua vida privada.
E pode até começar por aí o filme, por essa última atuação na Altice Arena a abrir as portas para o vazio que viria depois. A eterna imagem do artista naqueles segundos que antecedem a entrada em palco, o palco que, por duas horas de documentário, não largará quase nunca. De volta ao início, à viagem de comboio com o pai que, aos 10 anos, de Armadouro, na Pampilhosa da Serra, o levaria até à Gare de l’ Est, em Paris, e à infância passada numa pequena cidade a 50 quilómetros da capital. À vida de trabalho na fábrica de salsichas onde trabalhava toda a sua família e onde ele próprio foi parar, aos 16 anos, e não conseguiu largar até aos 26. A vida, que não chegando perto de ser uma vida boa, era melhor do que tinha deixado para trás em Portugal, dirá o próprio. “Não gostava nada daquilo. Se os últimos 30 anos me pareceram 10, aqueles 10 anos [na fábrica] pareceram-me 30”.
À fábrica, Tony havia de voltar sempre. Por exemplo, depois de em 1988 ter viajado até Portugal de propósito para participar num concurso de canções da RTP na esperança de uma viragem para, derrotado, ser obrigado a voltar. Entre atuações em festas de imigrantes, a sorte chegaria depois, quando, ainda em França, recebeu uma proposta para gravar um disco, pela Espacial. Entrará então Ricardo Landum, seu compositor e, a par do irmão do cantor, José Antunes, uma das figuras mais presentes no filme, recordando a primeira vez que ouviu falar naquele nome: “O Tony só vai para a Espacial se trabalhar contigo”.
Esse mesmo Tony a quem a música permitiria o regresso definitivo a Portugal. Mas o reconhecimento haveria de esperar, e para isso não bastou aquela primeira atuação no Olympia, em Paris.
Momentos decisivos foram vários para a afirmação de Tony Carreira como um dos cantores portugueses contemporâneos mais acarinhados – com a legião de fãs às quais Jorge Pelicano deu o protagonismo devido. Só pelas suas histórias, algumas delas difíceis, as histórias de quem poupa onde tiver de poupar para não perder um concerto – um concerto que, aprenderemos aqui, pode por vezes ser a sessão de terapia possível. “A gente não imagina o que vai dentro da cabeça das pessoas quando ouvem as canções”, nota Landum. E dirá a violinista que o acompanha em digressão que não conhece outro músico “capaz de fazer uma direta para poder estar com uma fã de cada vez” – e também a isso assistiremos sem que por uma vez que seja soe a um gesto falso, fabricado.
Formalmente, Tony pode até nem ser um grande filme. Mas não chegará a precisar disso para cumprir aquilo a que se propõe. Ou a chegar aonde quer. A partir de um ano divisório, aquele em que comemorava 30 anos de carreira mas também o que se seguiu às acusações de plágio movidas contra si (um embate que não foi relegado para um lugar menos importante aqui, muito pelo contrário; por momentos, a confrontação torna-se incómoda até para o espectador), Tony oferece, por fim, de bandeja àqueles que a quiserem ter, a explicação para o aparentemente inexplicável fenómeno.
E aqui é atentar no que diz Tony Carreira sobre as primeiras atuações no Coliseu dos Recreios e depois no Pavilhão Atlântico, convertido em Altice Arena. “Tony quê?”, recorda o cantor sobre a resposta que obtiveram ao pedido para alugar o Coliseu dos Recreios para um espetáculo que rapidamente esgotou afinal. Para ele, foi esse o grande momento: aquele em que o cantor emigrante virou artista. Porque, para um “cantor emigrante” nada ultrapassa o reconhecimento em Lisboa. Nem mesmo o Olympia.