Amanhã, em Harrison, nos arredores de Nova Iorque, o Benfica reencontra a Fiorentina, equipa italiana que tem lugar na memória infinita dos encarnados. Sobretudo num jogo épico, disputado no dia 1 de setembro de 1963, em Cádis, para o na altura famoso Troféu Ramón Carranza. Depois da final da Taça dos Campeões Europeus perdida para o Milan, em Wembley, o chileno Fernando Riera não aguentou o falhanço de um clube que viera de duas vitórias consecutivas na competição. Para o seu lugar entrou um húngaro, como Béla Guttmann: Lajos Czeizler. Treinador também breve, de uma época só, mas que pôs os encarnados a marcar golos como quem bebe água, sedento, de um córrego puro e fresco. O Ramón Carranza surgiu assim, mal desabrochou setembro, como o primeiro grande desafio de Czeizler.
Ramón Carranza: os espanhóis chamam-lhe “Trofeo de los trofeos”. Disputava-se desde 1955. Em 1963, o Benfica participou no Carranza pela primeira vez. Antes dele tinham sido convidados o Atlético (1955) e o Belenenses (1957). O Benfica voltaria a Cádis em 1964, 1965, 1971 e 1972. Em cinco presenças conquistou duas taças volumosas. Depois, a pouco e pouco, o Ramón Carranza viria a perder importância.
Mas, em 1963, o Ramón Carranza estava no auge do seu prestígio. Todos desejavam ir a Cádis uma vez na vida. Dessa vez estavam presentes o Barcelona, o Valência e a Fiorentina. Como geralmente acontecia, os espanhóis preparavam uma final caseira. E, assim, nas meias-finais, Valência e Fiorentina foram encaixados de um lado enquanto Barcelona e Benfica se encaixaram no outro.
A ideia podia ser boa, mas saiu frustrada. Empatados (1-1) ao fim de 90 minutos, Valência e Fiorentina seguiram para um prolongamento que firmou a vitória dos italianos (3-2). Por seu lado, portugueses e catalães reeditaram a final da Taça dos Campeões Europeus de Berna. Até no resultado (3-2). Aos 26 minutos, o Benfica chegava à vantagem, por Serafim. Já na segunda parte (49 m), Ré, que substituíra Vicente, fez o empate. Não se esperou mais de um minuto para que Yaúca desse nova vantagem ao Benfica. Zaldúa, aos 66 minutos, volta a empatar, para Serafim (81 m) decidir o jogo e atirar o Benfica para a final.
Italianos destroçados! Era a primeira vez que Benfica e Fiorentina estavam frente a frente. O Benfica entrou em campo com: Rita; Cavém, Raul e Cruz; Coluna e Humberto; José Augusto, Eusébio, Santana, Serafim e Yaúca. E a Fiorentina: Albertosi; Rubosi, Conciantoni e Castelletti; Guarnesi e Marchesi; Hamrin, Lojacono, Seminário, Maschi e Partu.
Juan Seminário, El Loco, um fantástico avançado peruano, já havia jogado em Portugal, no Sporting, e não tardaria a ser transferido para o Barcelona. “Grandissima squadra!!!”, diziam os italianos. E com razão. Albertosi era um gigante capaz de tapar todos os ângulos de uma baliza inapropriada para o seu tamanho. Kurt Hamrin, o sueco vice-campeão de 1958, não ficava a dever nada aos seus compatriotas Gren, Nordhal e Liedholm, o fantástico Gre-No-Li do Milan. Depois de terem visto o Barcelona espancar o Valência (4-1) no triste jogo espanhol para o terceiro e quarto lugares, o povo aguava por um embate de qualidade equilibrada entre portugueses e italianos. Não começou por ser excelente, convenhamos, caiu até para uma toada agressiva, mas, de um momento para o outro, estrelas e cometas encheram os céus da noite quente de Cádis. Tudo a partir daí foi luz. Intensa! Encandeante!
Hamrin pôs os italianos em vantagem aos 31 minutos. Sobre o intervalo, Santana lesionou-se e deu lugar a José Torres. E o Bom Gigante não tardaria a tomar conta dos acontecimentos. Não podia adivinhar, quando Czeizler o mandou aquecer, que estava à beira de uma das noites mais cintilantes da sua vida. Grande José Torres, gente do melhor, amigo entretanto perdido, primeiro nos labirintos da memória, que o atraiçoou como uma amante canalha, depois encaminhado lá para aquele lugar verde onde os que nos encantaram com uma bola nos pés continuam a brincar com ela até ao ponto mais alto de uma saudade eterna. Mal saído das cabinas, aos 46 minutos, fez o golo do empate. Agora, o desafio era combativo, excitante. Inquietos nos seu lugares, os espetadores pareciam viver intensamente uma tourada que guardava para o rapaz de Torres Novas rabos e orelhas.
Serafim fez o 2-1 (72 m), mas Locajano empatou três minutos depois. Final de loucos! Hamrin, o sueco impaciente, marcou o 3-2 logo no minuto seguinte. Não há aflição do lado benfiquista: Torres está lá e faz o 3-3. Torres, enorme, esguio, no centro da arena. Só faltava atirarem-lhe rosas e chapéus.
Segue-se para o prolongamento. A Fiorentina não resiste à cavalgada dos encarnados. O lilás pálido de Florença fica destroçado com os golos de Torres (2), Eusébio e Yaúca. A superioridade portuguesa é de tal ordem que o resultado poderia ter sido mais pesado. Sete a três! O Benfica sai de Cádis em ombros, como diriam os aficionados da festa brava. A forma como se transformou num vendaval devia ser estudada pelas leis da astrofísica. Os homens das camisolas violeta não passam de figurantes. Primeira vitória dos encarnados no Troféu Ramón Carranza. Voltariam mais vezes. É esse o destino dos vencedores…