“Se quisermos aprender um pouco acerca das coisas poéticas, torna-se necessário saber dos processos físicos”, escrevia o poeta João Miguel Fernandes Jorge (n. 1943) no início de O Roubador de Água (1981). E acrescentava que “as coisas da poesia não são metafísica, por isso tenho de ater-me, por pouco que saiba, ao sítio do mundo que me foi dado”. Um sítio que constitui instavelmente o próprio corpo, lugar de irresolúveis tensões, além de todos os espaços materiais por onde o corpo pessoal se espraia, mostrando ser mais do que a topologia física que a pele resguarda. Por fim, o corpo da linguagem, que a poesia deseja tocar pondo à luz o seu impoder – e se nunca é ao corpo que se chega, que se confunda a linguagem com o que nele é a sua sombra.
Regressa-nos, porém, o livro À Beira do Mar de Junho. A primeira edição é de 1982, pela Regra do Jogo, e chega agora uma terceira pela Relógio D’Água, que conta no seu catálogo com outros títulos do autor como O Lugar do Poço (1997), Bellis Azorica (1999), Invisíveis Correntes (2004) ou o mais recente Fuck The Polis (2018). Em quase meio século de produção poética, literária e ensaística, Fernandes Jorge convoca com bastante assiduidade outras linguagens artísticas – pinturas, esculturas, desenhos, esquissos, cerâmicas, museus inteiros, igrejas –, tecendo diálogos cultos com múltiplas referências culturais de diferentes momentos da História. Tal sucede, por exemplo, com livros como Crónica (1977), Museu das Janelas Verdes (2002) ou Mirleos (2015), neste último referindo-se o autor às “admiráveis ruínas” do fórum romano de Coimbra, expandindo as possibilidades da écfrase (isto é, numa definição muito rudimentar, a descrição verbal de artefactos não verbais – ofício que Fernandes Jorge transgride na sua literalidade, ao ler os rudes vestígios de outros séculos a partir do vigor íntimo do poeta, contagiando-se o passado com o presente, dialetizando-se as épocas, os estilos e os discursos).
Mas À Beira do Mar de Junho não reenvia para as pinturas de Vieira da Silva, nem para esboços de Rui Chafes, nem faz alusões a Mark Rothko ou à fotografia de Douane Michaels, para citar algumas presenças de outras artes na poesia do autor. A epígrafe – “Quaestio de aqua et terra” – alinha a leitura deste livro com um horizonte mais elementar, mas não necessariamente mais simples ou acessível. Água e terra, a casa e o mar, as coisas e os afetos, essas parcelas fragmentadas que perpassam pelo corpo sem aspirarem, contudo, a uma totalidade definitiva: este corpo não é mais a soma inequívoca das suas partes, mas o lugar onde os equívocos se dão, um fugaz pretexto para fazer cintilar em três versos um problema moroso da filosofia ocidental: “A quantidade que subsiste na substância / é composta de unidades? / Mas que dizes tu da unidade?”
E será de unidade em unidade, de memória em memória, de objeto em objeto, que À Beira do Mar de Junho irá recompor a sua paisagem singular de afetos, partindo do lastro de ausência deixado pelas coisas e pela passagem inexorável do tempo. Daí que os demonstrativos desempenhem na poesia uma função, talvez, timidamente desesperada: o real foge-nos, emudece-nos, ainda que diante a possibilidade de recombinações e acrobacias verbais para entulhar o horror ao vazio e ao silêncio – mas escrevendo-se “este rosto” sonha-se com uma proximidade, um efeito de evidência. A palavra fixa ilusoriamente o que está por natureza em insolvente travessia, garantindo-nos uma sobrevivência, uma pequena vida excedente à tirania da morte: “Olhar limpo tudo / o que não vai morrer / connosco”.
Na poética do autor, designada desde cedo por Joaquim Manuel Magalhães como um “trabalho silencioso de captação da ausência” (Os Dois Crepúsculos, 1981), palavras como “barco” ou “jardim” não visam estreitar referencialidades diretas: constituem-se antes como momentos de linguagem onde reverberam as descontinuidades entre o ato de dizer as palavras e o de encarar a ausência quando se percebe que “barco” ou “jardim” não cola os signos ao corpo, nem faz do passado o presente. Quanto muito, como indicia o título, fica-se à beira de. Há um poema que diz apenas isto: “Havia nesta parede um armário grande com sapateira”. O passado intervém em desajuste com o presente, um lugar onde se inscreve uma falta, um vazio que a memória preenche, honrando-o com a dignidade de ter existido, e decorrendo daí a dignidade de ter sentido. Qualquer que ele seja: sentido inefável para quem lê, talvez até para o próprio poeta, mas que a facticidade do poema eleva à condição de verdade, de pura afirmação tudo isto ter sido assim e de ser o necessário para se anotar à margem: “A alegria, / as coisas tão antigas.”
A narratividade é uma marca constante neste estilo, um modo de interceder na poesia uma voz fluente de prosa, criando-se um clima de proximidade com quem lê, ainda para mais povoando-se os textos de coisas comuns, acidentes e acasos, a feição mais rente do quotidiano, “entre colunas e erva e / restos de ossos”, mais o “intenso cheiro das macieiras” ou “a lata de bolos da infância”. Narra-se, de facto, muitas vezes neste livro, com referências a idades, sítios concretos, contextos determinantes: “Vinha do tempo dos quinte anos e pousada uma estranha / dor, a amizade do pátio do liceu. / Era antes da aula de latim e o latim referiu todo esse / tempo”. Há, inclusive, sucintos diálogos: “Foi antes, disseste «empresta-me o teu dicionário». / Respondeu-te «dá-mo no fim da aula». / E mais nada.” O restante corpo do poema (e a palavra corpo, aqui, adquire uma relevância especial) põe em evidência a matéria de que se reveste o caráter especial de ínfimos gestos sem porquê, mas os mais absolutos para a memória: “E, no fim, devolveste-o sem uma folha à pressa arrancada. / Uma folha referente à letra v, onde vinha virtus / que nunca traduziste por coragem / sempre por virtude. // Essa folha ainda está em casa dos teus, numa velha / gaveta de secretária. Lembras-te? Por agora chega. Volta depressa para o teu lugar.”
Acontece, porém, que mesmo esta vontade de narrar não tem como consequência direta que a prosa conte, descreva ou religue os seus momentos: em clave ironicamente metarreferencial, “de nada serve uma árvore seguindo / uma casa de outra casa” quando o poema se joga no “movimento da memória”. Por isso, a função da metonímia – o tropo linguístico pelo qual um referente surge a partir das suas partes, estabelecendo associações entre elementos com base na sua contiguidade –, aliada à descontinuidade sintática e à figura da elipse que Fernandes Jorge lhes aplica, criando pausas e interrupções inesperadas, tendem a despistar a ideia de acessibilidade destes poemas, como se até nos apontamentos mais banais, na sua aparente e inofensiva clarividência, irrompesse uma força brutal, aquela que na poesia tem o condão de nos emudecer, merecendo-nos o respeito por esta “arte de quem se serve de palavras” para servir as próprias palavras, sem mais outro fim que não esse.
Uma ferida tranquila
Se, num sentido muito literal e apressado, o “regresso ao real” apontaria para as emoções pessoais e a subjetividade do poeta como alternativas poéticas às dores de pensar pessoanas, às intelectualizações, ao condão hermético ou às experiências surrealizantes de requentado virtuosismo, os poemas de Fernandes Jorge apropriam-se do real a partir de aproximações impessoais, mas sem que isso implique necessariamente excluir a presença de um eu. Não um eu cheio, um sujeito pleno, essa totalidade romântica que, nas mãos de um narcisismo indulgente, apenas se limita a derramar prosas sentimentais na forma de versos e estrofes, confessando a sua sinceridade, mas um eu que é, acima de tudo, a reverberação do mundo e dos seus objetos no interior do sujeito. Como expõe Joaquim Manuel Magalhães, o fingimento poético não se opõe à expressão da sinceridade: “Através de um rio que nunca vi posso falar do curso do que vejo; através de um amor que nunca experimentei posso cantar as mágoas deveras sofridas; através da mais improvável das concretizações posso transmitir a qualidade mais abstracta que intuí; o corpo que nunca encontrei pode ser o que mais fulgura a sexualidade que tento exprimir” (Um Pouco da Morte, 1989).
A impessoalidade é essa outra coisa: é um eu, no limite da consciência de si, no ponto em que esse limite se sabe incontornável, mas que vai de corpo e alma pela exterioridade do mundo, recolhendo os seus despojos, assinalando datas e lugares, inscrevendo memórias – “os lugares da juventude / a paisagem / as palavras que dissemos” – sem que o sentimento de perda se assuma como o mais avassalador. A perda é, na verdade, o coração destes poemas, a sua necessidade vital, “uma ferida tranquila”: objetos que ali estavam e já não estão, a memória de um gesto intempestivo que susteve o tempo por segundos, a importância de dizer um nome em voz alta para que seja mais absoluta a intensidade com que ele é vivido: “Andara sem destino durante meses / e aquela noite surgia com o simples virar a / página de um livro, / quando uma palavra torna claro o enredo de longos / capítulos”. Memórias involuntárias, aluviamentos temporais que irrompem nos gestos do acaso, vivendo-se a plenitude da sua perda como instante de revelação (à letra, de apocalipse): “Assim duas vidas se revelam”. E o resto do poema desdobra a visão deste contacto (e contágio) à luz da sua proximidade com o fim: “Éramos sós. Estávamos no fim do mundo, quero dizer, / encontrei-me de súbito na minha vida, / na sua vida.”
A poesia não é, nunca foi, espelho do mundo. Mas quando se consegue captar o ponto-limite que une esse desígnio ao seu falhanço, quando a realidade verbalizada no poema traduz essa obscura clarividência que é olhar o caos de frente na sua esplendorosa simplicidade, nomeando-o a partir da linguagem existente, dizendo o verso justo (embora “áspero”) que nos permite reconhecer como nossos esses cristais de vida de alguém que não somos nós, então é porque a poesia consegue fazer coisas que só por esses “turvos dizeres” se tornam possíveis. Quase trinta anos depois da sua primeira edição, À Beira do Mar de Junho continua a mostrar o real no que este tem de simultaneamente tangível e longínquo, essa zona tensa onde o estranhamento face ao que nos é mais próprio se alinha com a condição essencial da surpresa: “É preciso perder o rosto mais próximo / vencê-lo como se fisgam pássaros novos / e ficar preso a esse movimento”.