O ano em que o Curtas voltou a ser o cinema português

O ano em que o Curtas voltou a ser o cinema português


Do 27.º Curtas Vila do Conde, que chega ao fim neste domingo, a nova curta de Gabriel Abrantes, distinguida como Melhor Ficção na Competição Internacional, saiu como o filme mais premiado. Na Competição Nacional, Ave Rara foi o melhor filme, e Mariana Gaivão a melhor realizadora, com Ruby.


Los Que Desean, o retrato de Elena López Riera de uma competição columbófila do sudeste de Espanha em que vence o pombo que conseguir passar mais tempo junto da única fêmea do bando, é o filme vencedor do Grande Prémio do 27.º Curtas Vila do Conde. Mas, como grande vencedor da edição do festival que chegou neste domingo ao fim com a cerimónia de entrega de prémios, poder-se-á apontar ainda um outro filme: Les Extraordinaires Mésaventures de La Jeune Fille de Pierre. A produção franco-portuguesa que marca o regresso de Gabriel Abrantes à curta-metragem recebeu o prémio de Melhor Ficção da Competição Internacional e o Prémio do Público da Competição Nacional (patrocinado pela Sociedade Portuguesa de Autores) – e foi ainda a escolhida como a candidata do Curtas Vila do Conde aos European Film Awards.

A temática não é totalmente nova na filmografia do realizador que ainda em 2016, em Uma Breve História da Princesa X, ficcionava o processo de criação da escultura Princess X, de Constantin Brancusi. Em Les Extraordinaires Mésaventures de La Jeune Fille de Pierre, o pano de fundo é o Museu do Louvre. Ou o que lá acontece quando, à noite, as luzes se apagam. Entre as possibilidades que oferecer uma história em que as obras de arte ganham vida e um guia que, nas ruas de Paris, procura reunir apoiantes para uma nova revolução há de se desenrolar esta mais recente curta-metragem de Gabriel Abrantes, que chegou a Vila do Conde (onde justamente no ano passado a sua primeira longa, Diamantino, fez a abertura do certame) depois da estreia mundial em Cannes, na Quinzena dos Realizadores.

Os filmes voltam nesta noite a ser exibidos, terminada a cerimónia da entrega de prémios, numa edição em que não foi preciso esperar por eles para adivinhar que seria marcada pelo cinema português – afinal, era Carlos Conceição a partilhar com o norte-americano Todd Solondz o lugar de realizador em foco na programação.

Mas a verdade é que também para aí acabaram por apontar as decisões do júri das competições nacional e internacional, composto por Alejandro Díaz Castaño, diretor do Festival Internacional de Cinema de Gijon, as realizadoras Aya Koretzky e Konstantina Kotzamani (vencedora no Curtas do prémio de Melhor Ficção em 2016, com Limbo), o realizador Kleber Mendonça Filho (Aquarius e Bacurau, exibido pela primeira vez em Portugal na abertura desta edição) e o jornalista e crítico de cinema Leo Soesanto.

Não foi então Les Extraordinaires Mésaventures de La Jeune Fille de Pierre a única produção nacional preferida sobre as obras estreadas na Competição Internacional. Num ano em que, na Competição Nacional, a animação se fez representar apenas por um (mas consistente e pertinente) filme – Purple Boy, de Alexandre Siqueira – foi exatamente essa coprodução entre Portugal, França e Bélgica a vencedora do prémio de Melhor Animação da Competição Internacional. Na Competição Nacional, foi também essa curta de animação a vencedora do prémio de aquisição Movistar+. Purple Boy, o filme que marcou a estreia de Siqueira no Curtas, parte de uma discussão de um casal que semeia um grão sobre a identidade de género do ser que há de gerar, e acompanha os constrangimentos com os quais é confrontado o personagem – Óscar – até à idade adulta.

Numa edição em que a produção nacional volta a ser premiada em categorias da Competição Internacional – ainda em 2017, ano em que o festival chegava à sua 25.ª edição, Marta Mateus venceu, com Farpões, Baldios, a sua estreia na realização, o Grande Prémio, este ano entregue a Los Que Desean – importará não deixar de olhar para os vencedores de uma Competição Nacional que se fez mais consistente do que na edição do ano passado ­­– unidos tanto pelo recurso dos realizadores a não-atores, embora apenas num deles a decisão se aplique a todo o elenco, como por uma fotografia imponente.

Ave Rara, uma produção da Terratreme escrita e realizada por Vasco Saltão, venceu o prémio de Melhor Filme. Filmado numa aldeia do Alentejo, Ave Rara acompanha um caçador (Gustavo Sumpta) numa história de silêncios e de culpa, de fantasmas, altares e sacrifícios, a partir de A Queda dos Anjos Rebeldes, de Bruegel. Ainda na Competição Nacional, Mariana Gaivão recebeu o prémio de Melhor Realização, com Ruby. Uma produção da Primeira Idade, também aqui com a natureza como pano de fundo. A natureza no improvável lugar onde ela e o punk se cruzam, ou quiserem cruzar. Um lugar que não será produto da imaginação da realizadora, que em Góis, lugar que conhece desde a infância, foi realmente dar com Ruby – que não é  apenas um título ou uma personagem. É mesmo Ruby Taylor, com quem a realizadora-argumentista construiu esta surpreendente história de coming of age.