“A história de uma famosa história, o argumento original pintado na tela, tu és um poeta danado, ele é um dramaturgo, deviam escrever filmes juntos, consultar um cartomante, cair de amor como se nada pudesse cair. A inspiração veio de um incidente bizarro testemunhado em 1913 num parque ao lado do Weiss Institut: ele reparara numa jovem embriagada com a felicidade da vida, seguiu-a até ela desaparecer por entre os arbustos dos quais emergiu, momentos depois, um burguês. No dia seguinte, descobriu que a rapariga tinha sido assassinada. A história foi sugerida por um espetáculo de rua com um homem muito forte que os dois escritores viram num parque da Kantstraße, de Berlim.”
Curiosidades contadas em histórias, histórias contraditórias sobre o princípio de “O Gabinete do Dr. Caligari”, de Robert Wiene, coladas e contadas pela voz de Eduardo Brito. Um dos quatro artistas que, na 27.ª edição do Curtas, que decorre até domingo em Vila do Conde, inauguraram na Solar – Galeria de Arte Cinemática, uma exposição dedicada ao centenário desse filme que é tido como o expoente máximo do expressionismo alemão: “O Caso Caligari”, que, terminado o festival, continuará em exposição até 7 de setembro.
A narração é feita a partir de uma colagem de várias fontes: “From Caligari to Hitler”, de Siegfried Kracauer, “Das Cabinet des Dr. Caligari”, de David Robinson, excertos das canções “Be My Wife”, “Heroes”, “I’m Deranged” e “Where Are We Now”, de David Bowie, e ainda “Men of Good Fortune”, “Berlin” e “Magic and Loss” de Lou Reed, às quais somou o artista algumas memórias suas, de passagens pela cidade onde o filme se fez há 100 anos.
De volta à voz de Eduardo Brito: “A rodagem começou em 1919 e durou até janeiro de 1920 (…) Nunca esqueci [as palavras] do meu professor de cinema sobre este filme, falando sobre a tensão entre luzes e sombras”. E por aí iremos nesta nova forma de descobrir a obra de Wiene que o artista propõe em “Curiosidades do Gabinete (cada história é sempre um remake de outra história)”, em que, à componente sonora, o artista acrescenta um trítico em três ecrãs com o resultado das filmagens de uma viagem que fez a Berlim, à procura do rasto de “O Gabinete do Dr. Caligari”. “Fascinam-me os lugares onde aconteceu alguma coisa, que já não está a acontecer”, disse o artista na inauguração da exposição que, integrada na programação do Curtas Vila do Conde, conta ainda com outras três obras inéditas: “DDDM”, de Rainer Kohlberger,
“Anoxia”, de Jonathan Uliel Saldanha, e “From Caligari to Jud Süss”, de Daniel Blaufuks.
“Numa viagem a Berlim, interessei-me por ir aos lugares onde o filme tinha acontecido.” Daí que, num primeiro ecrã, sejam projetadas imagens do lugar onde o filme foi rodado, há 100 anos, e, no terceiro, do lugar onde estreou, há 99. No meio, o filme a ser escrito, pelo artista, num caderno de páginas em branco: “No Museu do Cinema de Berlim, onde podem ser vistas algumas das páginas do argumento, fotografei-as e depois mimetizei o gesto da escrita, que normalmente é o início de um filme.” Eduardo Brito vê este tríptico como “uma ideia ficcionada do filme”, a partir dos lugares onde já não está. Nesta obra de Eduardo Brito, que até em termos formais não estabelece qualquer relação com a forma do filme que celebra (“o filme não aparece de forma nenhuma; não há preto-e-branco, não há expressionismo”), a ausência está para lá de presente.
Não será a única das quatro obras que compõem “O Caso Caligari” a propor-nos um olhar sobre o filme de Wiene a partir do presente. “DDDM”, em que o artista visual austríaco Rainer Kohlberger explora aquilo que descreve como “uma dramaturgia de mundos interiores e exteriores”, “o movimento do sujeito imóvel”, uma bidimensionalidade do tempo. Para Mário Micaelo, curador da exposição, “uma obra abstrata, algures entre o vídeo e a luminotecnia, que tem um efeito profundamente hipnótico e que leva o espetador a entrar no ambiente de ‘O Gabinete do Dr. Caligari’ da forma mais contemporânea possível”.
A última sala de “O Caso Caligari” foi reservada para “From Caligari to Jud Süss”. Um vídeo de 19 minutos que Daniel Blaufuks montou, de forma intercalada, a versão original do filme de Wiene, com filtros de cores, com excertos de “Jew Süss” e “Jud Süss”, filmes posteriores, já de 1940, um britânico e um alemão, estreados plena II Guerra Mundial, ligados pelos atores de “O Gabinete do Dr. Caligari”, mas, por força das circunstâncias, em campos opostos. Segundo o artista, mais importante do que assistir à totalidade desta sua obra, será ler o texto que a acompanha, na folha de sala. “Na Alemanha, os juízes do III Reich continuaram a ser juízes, como também aqui os juízes do Estado Novo continuaram a sê-lo”, analisa Mário Micaelo. “Se transpusermos isto para a escala da criação artística, as pessoas que trabalharam com um regime acabaram por se adaptar a outro e trabalhar com ele. Se os artistas não mantiverem a sua integridade, que consequências é que isso pode ter? É apenas a voragem do tempo? Isto cria-nos uma certa incomodidade.”