Prefácio para um Arquipélago. Já não há como calar as vozes silenciadas

Prefácio para um Arquipélago. Já não há como calar as vozes silenciadas


Numa residência artística que realizou no festival Walk & Talk, que acaba de arrancar para a sua 9.ª edição, Maria Trabulo percorreu os arquivos regionais dos Açores do tempo da ditadura, onde se deparou com um conjunto de publicações clandestinas dos opositores que o regime deportava para as ilhas.


“Prefácio para um Arquipélago” é o título de um poema. Um dos poemas com que Maria Trabulo foi dar nos Arquivos Regionais dos Açores, em Angra do Heroísmo, e que por estes dias têm sido transmitidos na emissão da Antena 1 Açores, sem aviso, mas que podem ser também ouvidos no cimo da Torre Sineira de Ponta Delgada, no edifício da câmara municipal. Ou encontrados pelas paredes da cidade, em cartazes que a artista espalhou por locais estratégicos. Um exemplo? O edifício onde em tempos serviu como centro de operações da polícia política naquela que é hoje a maior cidade do arquipélago.

“Prefácio para um Arquipélago” é também o título da exposição que, com curadoria de Sérgio Fazenda Rodrigues, a artista inaugurou neste fim de semana, integrada no circuito de exposições do festival Walk & Talk, que arrancou na última sexta-feira para a sua nona edição, que se prolonga até 21 de julho por toda a ilha de São Miguel, com epicentro em Ponta Delgada. Uma exposição que parte daquela torre, em tempos o ponto mais alto da cidade, mas que Maria Trabulo atira para as ruas, num requestionar do poder da palavra — a palavra escrita e a palavra falada – num encontro com a génese do festival.

“Quando no ano passado estive cá em residência tive muita curiosidade em relação à origem do festival, com o facto de ter começado com murais e com arte especificamente de parede, para a rua, aberta à comunidade. Questionei-me sobre se estaria ligado à história deste lugar, a alguma tradição de murais como a que existiu no sul do Continente no pós-25 de Abril — no Porto, por exemplo, não existiu tanto isso”, comenta ao i a artista, natural dessa cidade. “Então comecei a investigar esse período da ditadura e do Estado Novo nos Açores – no fundo, o século XX nos Açores – face àquilo que se passou no Continente e descobri a história do envio de presos políticos para as ilhas, sobretudo entre 1927 e os anos 40.”

Eram os deportados políticos. “Imediatamente a seguir ao início da ditadura militar, que foi já um pré-Estado Novo, aqueles que se opusessem ao regime começaram a ser enviados para os Açores e distribuídos pelas nove ilhas. Chamavam-lhes deportados políticos. Eram enviados para cá, recebiam um subsídio de deportados, e podiam trabalhar, podiam ter as suas casas, mas estavam em constante vigilância.” Estavam, além disso, impedidos de deixar a ilha a que o regime decidira que haviam de ficar confinados.

“Entre 1927 e 1931 houve cerca de mil pessoas enviadas para os Açores e distribuídas pelas nove ilhas. A partir de 1931, passam a estar presos na ilha Terceira no Forte de São João Baptista – uma fortaleza que foi transformada em prisão.” Foi o ano da chamada Revolta das Ilhas: uma revolta militar espoletada justamente pelos deportados contra a ditadura militar instaurada em Lisboa em 1926 que, iniciada na Madeira, rapidamente alastrou aos Açores.

O maior movimento de envio de opositores ao regime para as ilhas deu-se até à criação do Tarrafal, em 1936, verificou Maria Trabulo que, também nos Arquivos Regionais dos Açores, analisou a correspondência entre os mais altos representantes da polícia política no arquipélago e Lisboa. “Esses documentos da censura estão eles próprios censurados, no sentido em que não são muito visíveis, mas de forma intencional: estão camuflados nas paredes da própria torre que em si é um espaço intenso, porque é um símbolo do poder. Da torre, vês os aviões a aterrar, vês os barcos a chegar, vês parte da cidade e do que nela se passa.”

Daí que tenha sido o cimo da torre o lugar escolhido pela artista para expôr um mapa em que são assinalados locais como a antiga galeria Teia. “Foi fundada por um senhor chamado Tomás Abreu e havia mais duas do género dos Açores. Havia a Teia, em Ponta Delgada, outra em São Jorge e uma outra na Terceira. Eram galerias de arte, que funcionavam como salas de exposições, mas nas traseiras como livrarias clandestinas, onde se distribuíam livros editados pelos próprios, edições limitadas.” Mais prolífica em edições clandestinas no tempo do Estado Novo foi a Ilha Terceira. “Isto está relacionado com o próprio povoamento das ilhas: em São Miguel [vigorava] sobretudo um sistema feudal, o trabalho de agricultura e serviços muito ligados ao Continente e a empresas; na Terceira, os seminários, o culto da religião e os estudos.”

A exposição de Maria Trabulo — com Rita GT vencedora do open call para residências artísticas na edição de 2018 do festival — é uma das sete que podem ser visitadas ao longo desta edição do Walk & Talk, com curadoria de Sérgio Fazenda Rodrigues, que o intitulou de “Deambulação Identitária”. O culminar das residências que Andreia Santana, Diana Vidrascu, Gonçalo Preto, Maria Trabulo, Miguel C. Tavares & José Alberto Gomes, Mónica de Miranda e Rita GT realizaram nos Açores, com o apoio do festival, ao longo dos dois últimos anos.

O circuito expositivo estende-se do 4.º piso do centro comercial Solmar, um dos pontos âncora do festival (com “Timeshores”, de Diana Vidrascu, “In(sul)ar”, de Mónica de Miranda, e, no terraço, no interior de uma piscina desativada, “Strata”, de Andreia Santana), a outros quatro espaços de Ponta Delgada. Como ao Museu Carlos Machado – Núcleo de Santo André (o museu de História Natural de Ponta Delgada), onde Gonçalo Preto apresenta “Limbo” e Rita GT o seu “Recetáculo”, a Torre Sineira que acolhe parte da exposição de Maria Trabulo, ou ainda o contentor instalado no anfiteatro ao ar livre das Portas do Mar para receber “East Atlantic”, de Miguel C. Tavares & José Alberto Gomes.

Ao longo do festival, os poemas selecionados por Maria Trabulo das edições que circularam clandestinamente pelas ilhas nas últimas décadas do Estado Novo serão também ditos em sessões de poesia, seguidas de conversas, com a participação de figuras ligadas à literatura, ao ensino e às artes, “não necessariamente micaelenses ou açorianos, mas pessoas que participam da cidade nessas áreas e que vivem cá já há muito tempo”. “Interessa-me muito refletir sobre esta questão do poder da palavra — que, na altura, como hoje, é perigosa e poderosa. Vivemos em perpétua espionagem, uma espionagem em nome da segurança. E também hoje a liberdade de expressão está a sofrer alterações. Tu, como jornalista, começas a ter limitações no teu trabalho; eu, como artista, começo a ter também limitações no meu trabalho com determinadas instituições. Publicados entre 1968 e 1974, são poemas da autoria de A. H. Santos Barros, Álamo Oliveira, Alves Redol, António José da Cunha Ribeiro, Emanuel Félix, Fallorca, Ivone Chinita, José Martins Garcia, Macedo Fernandes, Pedro da Silveira, Urabano Bettencourt, Van der Hagen, Vasco Costa, reproduzidos quase sempre em excertos. Excertos como “Estamos aqui/ algures/ no mundo.// Escreva-nos quem quiser/ ou quem puder.”