Da democracia na Europa


O PPE ganhou as últimas eleições europeias, pelo que seria de esperar que fosse Manfred Weber, que se tinha previamente apresentado como candidato, o futuro presidente da Comissão.


Em 1831, Alexis de Tocqueville foi enviado pelo Governo francês para estudar o sistema prisional americano. No entanto, o que verdadeiramente o fascinou nos Estados Unidos foi o seu sistema político e a forma como o mesmo cativava o cidadão comum, que participava empenhadamente no processo político, contribuindo para o bom funcionamento da democracia. Em consequência, ele viria a publicar em 1835 um livro intitulado Da Democracia na América, em louvor do sistema político americano, que rapidamente se tornou um clássico do pensamento político mundial.

Se, em 2019, Alexis de Tocqueville pudesse escrever um livro sobre a democracia na Europa, é difícil acreditar que do mesmo constasse qualquer elogio às instituições políticas europeias. Na verdade, seria com espanto que ele descobriria que os europeus votam em eleições para escolher um Parlamento que não dispõe sequer de iniciativa legislativa e que os candidatos a ocupar o principal cargo da União, que foram apresentados ao eleitorado, podem depois ser alterados por qualquer arranjo de bastidores que acaba por escolher para esse cargo alguém completamente anódino para a maioria dos cidadãos europeus.

Há muito tempo que se criticava o deficiente funcionamento democrático da União Europeia, que se limita a fazer eleições de cinco em cinco anos para escolher um Parlamento Europeu com poderes reduzidíssimos, sem paralelo com qualquer Parlamento nacional. Os eleitores sentem, por isso, um enorme desinteresse em eleger eurodeputados que recebem salários principescos para estar num órgão sem poder algum. E, ainda por cima, o Parlamento Europeu nem sequer possui algo tão elementar como um simples quórum de funcionamento, o que leva que muitas vezes vejamos sessões plenárias em que os eurodeputados estão a discursar para uma sala vazia. Tudo isto leva a que a abstenção nas eleições europeias seja muito superior à das eleições nacionais.

Nos últimos tempos procurou-se atenuar o desinteresse pelas eleições europeias através da escolha prévia de Spitzenkandidaten. Trata-se de indicar previamente aos eleitores quais são os candidatos que os diversos partidos europeus entendem apresentar para presidente da Comissão. Esse processo reforça claramente a legitimidade democrática da Comissão, cujo presidente é, assim, previamente conhecido dos eleitores, permitindo-lhes saber, quando votam numa das formações políticas europeias, qual é o candidato escolhido para esse cargo. Desta forma, o processo eleitoral europeu torna-se semelhante ao das eleições nacionais, em que os eleitores, embora elejam deputados, sabem que através do seu voto contribuirão para a escolha do futuro primeiro-ministro, que assim é indicado pelos partidos previamente às eleições.

O PPE ganhou as últimas eleições europeias, pelo que seria de esperar que fosse Manfred Weber, que se tinha previamente apresentado como candidato, o futuro presidente da Comissão. Como, porém, não tinha maioria absoluta, António Costa e Pedro Sánchez apostaram em criar uma geringonça europeia, escolhendo antes Frans Timmermans para presidente da Comissão. Essa posição teve inicialmente o apoio de Angela Merkel, mas caiu perante a feroz oposição do Grupo de Visegrado e do próprio PPE. Não seria, de facto, uma solução positiva, mas tinha a vantagem de ser escolhido um outro Spitzenkandidat, o que implicaria um menor afastamento em relação ao eleitorado.

Só que, como na Europa tudo funciona com a distribuição de lugares entre os chefes de Governo dos Estados mais importantes, foi antes escolhida para o cargo Ursula von der Leyen, a actual ministra da Defesa da Alemanha, muito próxima de Angela Merkel. Emmanuel Macron foi compensado com a escolha de Christine Lagarde para o Banco Central Europeu, enquanto Pedro Sánchez recebeu a nomeação de Josep Borrell como alto representante para a Política Externa. Trata-se de uma solução totalmente antidemocrática, uma vez que fora da Alemanha ninguém sabia quem era Ursula von der Leyen, quanto mais das suas possibilidades de ocupar o mais importante cargo europeu. Tudo isto só demonstra a falta que vai fazer o Reino Unido numa Europa agora totalmente dominada pelo eixo franco-alemão.

Os deputados do Partido Brexit foram justamente criticados por terem adoptado o comportamento indigno de virarem as costas aquando da execução do hino europeu, um acto de desrespeito inaceitável, ainda por cima por uma música que corresponde a uma das maiores criações do género humano. Mas também temos de considerar um desrespeito inaceitável a atitude dos chefes de Governo europeus que cozinharam esta solução num jogo de bastidores, virando igualmente as costas aos cidadãos europeus que votaram nas últimas eleições. A democracia na Europa vai de mal a pior.

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990