“Acabei os exames, e agora?”

“Acabei os exames, e agora?”


Muitas pessoas acham surpreendente que mesmo alunos com boas médias no ensino secundário tenham dúvidas sobre a sua capacidade de sucesso no ensino superior, mas esse receio tem razão de ser.


Estamos no período do ano em que, após concluírem os exames, muitos jovens têm de tomar decisões sobre o seu futuro. Não sei se o leitor se inclui neste grupo mas, não sendo o caso, poderá ser bom pensar no assunto ou, se for de uma geração mais velha, refletir sobre como a sua experiência poderá ajudar quem precisa de conselhos. Para o ajudar, partilho nesta crónica duas questões de candidatos ao ensino superior.

“Será que sou suficientemente inteligente?”

Muitas pessoas acham surpreendente que mesmo alunos com boas médias no ensino secundário tenham dúvidas sobre a sua capacidade de sucesso no ensino superior, mas esse receio tem razão de ser. O prof. James Flynn dedicou a sua carreira a estudar a inteligência e um dos estudos que conduziu foi o de medir a capacidade de alunos finalistas de usarem lógica e conhecimentos básicos da sua área de estudos para resolver problemas da vida real. Ficou surpreendido por não ter encontrado correlação entre essa capacidade e a média de curso do aluno.

A confirmação da capacidade intelectual dos candidatos pode ser validada noutro trabalho desse professor e que ficou conhecido por efeito de Flynn. A forma mais comum de medir a inteligência usa o quociente de inteligência calculado com base num conjunto de testes padronizados. O quociente é ajustado de forma a que a média seja 100 e que dois terços da população tenham um quociente de inteligência entre 85 e 115. Os testes padronizados incluem problemas de raciocínio abstrato, aritmética, vocabulário e cultura geral. Em 1981, Flynn encontrou um artigo com 30 anos que afirmava que um soldado da i Guerra Mundial com uma inteligência no percentil 50 ficaria no percentil 22 quando comparado com os soldados da ii Guerra Mundial. Verificou também que a classificação dos testes de QI tem de ser periodicamente normalizada por forma a manter a média em 100. Esta necessidade de correção, o efeito de Flynn, está documentada em mais de 30 países e, segundo alguns autores, poderá corresponder a uma evolução de três pontos em cada dez anos. Isto significaria que um jovem que hoje se candidata ao Técnico com uma inteligência considerada média estaria incluído no grupo de 2% dos jovens mais inteligentes de há 108 anos, quando a escola foi fundada.

“Qual o risco de a minha futura profissão ser ‘automatizada’?”

Um dos momentos mais interessantes do documentário sobre o torneio de Go entre o campeão coreano Lee Sedol e o programa de computador AlphaGo, desenvolvido pela Google DeepMind, é a expressão de incredibilidade do grande mestre após a primeira derrota. Num país onde este jogo é extremamente popular, Lee Sedol, que dedicou grande parte da sua vida a estudar o jogo, tinha anunciado que contava ganhar as cinco partidas. Acabou por ganhar apenas uma. Se um programa de computador consegue aprender a jogar um jogo com a explosão combinatória do Go, haverá profissões que não estejam em risco de automatização?

A resposta é que o Go, apesar de ter um número elevadíssimo de combinações de posições no tabuleiro, tem um conjunto de regras muito reduzido. Foram esta restrição e a possibilidade de repetição ilimitada do desafio que permitiram o desenvolvimento de um sistema que, aprendendo a jogar consigo próprio, venceu o jogador humano. Assim, atividades que melhoram com o conhecimento do passado e que se espera que variem pouco no futuro terão maior probabilidade de serem automatizadas.

Desde que o trabalho sobre o efeito de Flynn foi publicado, em 1987, têm surgido diversas explicações para a sua causa. O resultado parece ser mais influenciado pelas componentes relacionadas com tarefas abstratas. Um grupo de investigadores da Estónia comparou a compreensão de palavras por crianças em idade escolar, em 1930 e 2006, notando que os progressos se observaram em palavras como “lei”, “cidadão” ou “compromisso”. O progresso parece promover a generalização de conceitos abstratos que nas gerações anteriores eram exclusivos de uma minoria de académicos. Tal é o caso do “pensamento computacional”, a forma algorítmica de resolver problemas complexos, identificada como uma competência tão útil para a atual geração como a matemática e a física.

É a capacidade de abstração e generalização que dá a um profissional a capacidade de transferir o seu conhecimento para domínios diferentes ou para novas e inesperadas situações. O algoritmo PageRank usado pela Google para determinar a relevância de uma página web não é mais do que uma aplicação do princípio usado para determinar a relevância de um artigo científico contando o número de citações que outros artigos lhe fazem. Os mecanismos para fazer transferência de conhecimento através da abstração e da generalização são tão mais difíceis de automatizar quanto mais diferentes os domínios ou a variedade das situações. É, por isso, natural que tarefas que envolvam novos problemas ou múltiplos domínios do conhecimento tenham maior dificuldade em ser automatizadas. Por outro lado, profissionais com capacidade de abstração, generalização e conhecimento de variados domínios têm menos riscos de obsolescência profissional.

Este confronto entre os especialistas e os generalistas é o tema do livro Range: Why Generalists Triumph in a Specialized World, de David Epstein. Tal como James Flynn, o autor defende a necessidade de uma educação mais focada no desenvolvimento da inteligência crítica. Os estudantes devem ser ensinados a pensar antes de lhes ensinarem sobre o que pensar. Já agora, se o seu professor lhe disser que os alunos de há dez anos é que eram bons, relembre-o do efeito de Flynn.

 

Professor do Instituto Superior Técnico

lco@tecnico.ulisboa.pt