A ‘pequena guerra’ sobre quem realmente venceu a Segunda Grande Guerra

A ‘pequena guerra’ sobre quem realmente venceu a Segunda Grande Guerra


Terá sido o D-Day a abrir caminho para a vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial? Não estaremos a esquecer-nos de alguma coisa?


Suscitou controvérsia a recente comemoração do septuagésimo-quinto aniversário do desembarque anglo-americano (e canadiano, também) nas praias da Normandia – a Operação Neptuno, ocorrida a 6 de junho de 1944 e muitas vezes designada de D-Day. Foi lançada a acusação de revisionismo histórico às autoridades ocidentais que organizaram as comemorações – em Portsmouth, no Reino Unido, no dia 5 do mês corrente, e nas próprias praias francesas no dia seguinte – por terem-se abstido de convidar as autoridades russas. Distintamente, há cinco anos, Putin fora convidado, apesar de se viver então o rescaldo da anexação da Crimeia, ocorrida no mês de março de 2014. Junte-se-lhe a ausência de líderes ocidentais na parada da vitória na Praça Vermelha, há pouco mais de um mês, e torna-se evidente a atual desunião dos “Três Grandes” – assim eram designados os Estados Unidos, a União Soviética e o Império Britânico quando aliados no combate à Alemanha Nazi –, ou do que resta hoje deles, pois a Rússia e o Reino Unido, constituem a forma mais circunscrita do segundo e do terceiro daqueles três aliados.

Avivando o desconforto russo, muitos dos títulos de jornais evocativos da efeméride contribuíam para secundarizar o colossal esforço soviético para a derrota do nazismo. Tomemos como exemplo o jornal Público. Em notícia de primeira página, na edição de 6 de junho, surgia o título: “Dia D, 75 anos, A II Grande Guerra ganhou-se aqui, nas praias da Normandia”. Acusando o toque, Alexander Bryantsev, conselheiro da embaixada da Rússia em Lisboa, não desdenhou lavrar o seu mitigado protesto em carta ao diretor do Público (8.6.2019). O protesto de Bryantsev quase surge como um apelo a que os vinte e seis milhões de soviéticos perecidos na guerra germano-russa de 1941-45 não sejam de alguma forma apagados da grande tela histórica da Segunda Guerra Mundial, de forma “pseudoestalinista”, poder-se-ia ironizar, se o assunto não fosse tão trágico. Na edição do dia 9 do mesmo jornal, Teresa de Sousa, sob o título “Convém nunca esquecer a História”, referia o esforço russo na frente Leste, mas considerava que foi nas praias da Normandia que se “iniciou o caminho da libertação da Europa do poder nazi”. Terá sido assim? Não estará a esquecer-se algo da História? E não foi a batalha de Estalinegrado (agosto de 1942-final de janeiro de 1943) crucial, ao ponto de ser geralmente considerada como ponto de viragem do conflito europeu? E a gigantesca batalha de Kursk (julho de 1943) – o maior confronto de blindados de toda a guerra – não quebrou definitivamente a espinha à veleidade ofensiva da Wehrmacht na Rússia?

Querendo-se respeitar a verdade histórica, evoque-se, de forma tão isenta quanto possível, a situação militar vivida na Europa no decurso do final da primavera e do verão de 1944, meses em que a Alemanha esteve muito próxima do colapso. Dois dias antes do grande desembarque na Normandia, Roma fora declarada cidade aberta às forças anglo-americanas, para alívio dos seus habitantes de então e de todos os europeus vindouros, herdeiros do singular património da “cidade eterna”. No entanto, o terreno montanhoso e a barreira dos Alpes, esta intransponível para grandes operações de guerra moderna, secundarizariam o teatro italiano até ao final do conflito. O mesmo não acontecia com o noroeste da França, onde começa a grande planície europeia, plataforma ideal para cravar, a algumas centenas de quilómetros de distância apenas, um golpe fatal ao Reich no Ruhr, o seu coração industrial – a distância em linha reta entre Caen e Colónia é de cerca de 550 km. No entanto, aquelas centenas de quilómetros seriam penosamente percorridas e o Reno só seria atravessado em março de 1945, nas semanas finais da guerra, com a resistência alemã na frente ocidental já então em colapso. Por essa altura, a ideia inconfessada de muitos militares alemães – desincentivados da luta pelas populações locais, mas, ao mesmo tempo, receosos da justiça sumária de fanatizadas forças de segurança nazis – era facilitar, ou, pelo menos, não dificultar em demasia o avanço anglo-americano no território germânico, por forma a minimizar a extensão da incursão soviética vinda do Leste.

 

Números impressionantes Mas recuemos a junho de 1944, mais precisamente ao dia 22, quando foi desencadeada na Rússia Branca (atual Bielorrússia) a Operação Bagration. Não é impossível que a escolha daquele dia tenha sido uma forma de o comando russo lembrar ao invasor nazi que a Operação Barbarossa começara precisamente três anos antes, com ímpeto máximo naquele mesmo sector. No decurso de meia dúzia de semanas, esta ofensiva iria triturar o Grupo de Exércitos Centro, levando as tropas soviéticas a um avanço de cerca de 500 km, posicionando-as, no início de agosto, a 100 km do Wolfschanze, o quartel-general de Hitler, em Rastenburg, na Prússia Oriental. Ali mesmo, alguns dias antes, a 20 de julho, o coronel Stauffenberg fizera rebentar uma bomba que por pouco não eliminou Hitler, mas que revelou um putsch com amplas ramificações no estado-maior em Berlim e no alto comando alemão em França. Mas a ofensiva soviética chegava também ao Vístula, frente a Varsóvia. Mais a sul, nos Cárpatos, a fronteira polaco-ucraniana fora também atravessada. Todo o tabuleiro geopolítico dos Balcãs entrara em profunda convulsão, com a Roménia, antes aliada da Alemanha, a mudar de campo (20 de agosto). Também na região do Báltico se desenvolviam amplas movimentações, com o Grupo de Exércitos Norte a ficar circunscrito à Península da Curlândia, a oeste de Riga. Resumindo, no decurso do verão de 1944, toda extensa frente Leste, do Báltico ao Mar Negro (a distância em linha reta de Riga a Odessa é de 1250 km), fora deslocada em algumas centenas de quilómetros em direção a ocidente. Nesta grande convulsão, em que o “rolo compressor russo” beneficiou de crescente mobilidade – em parte facilitada pelo fornecimento de camiões e de jeeps norte-americanos, ao abrigo do Lend-Lease Act – a resistência alemã viu-se submergida por um Exército Vermelho que se tornara numa máquina de guerra avassaladora. Quando a frente se estabilizou, no decurso de setembro, as perdas sofridas pelos alemães eram irrecuperáveis; o historiador militar Rüdiger Overmans, em autorizado estudo sobre o assunto (Deutsche militärische Verluste im Zweiten Weltkrieg, 2004) avança números impressionantes: 590.000 mortes alemãs na frente Leste, no decurso de junho, julho e agosto de 1944. No mesmo período, verificavam-se 160.000 mortes alemãs nas outras frentes de guerra.

Não se pretende diminuir a importância do tão celebrado D-Day e da batalha da Normandia, que se lhe seguiu, a operação Overlord. Com a campanha em desenvolvimento, o marechal Rommel, o segundo em comando naquela frente, convidava o seu Führer a tirar as conclusões políticas do manifesto sucesso do desembarque aliado. Conselho corajoso, mas temerário, também: poucos meses mais tarde, provando-se que estivera no conhecimento do complot do círculo de Stauffenberg, Rommel iria ser empurrado por Hitler ao suicídio. Que Paul Hausser e Sepp Dietrich – os mais altos graduados da Waffen-SS, duro corpo de elite, obstinado na causa nazi – compartilhassem a visão pessimista de Rommel dá bem a medida da crise instalada entre os altos comandos alemães na frente normanda. Experimentadas tropas alemãs de elite, temperadas por anos de duros combates na frente leste, viram-se confrontadas com uma situação para elas nova, mas que Rommel já conhecia dos combates de 1941-43, no teatro da Líbia e da Tunísia: a desmoralização imposta pelo domínio esmagador da força aérea inimiga. Assim, tropas exímias na manobra militar eram literalmente obrigadas a rastejarem sob a metralha e sob as bombas durante as horas do dia e a limitarem a suas movimentações às horas de escuridão, escassas no solstício de verão. É neste contexto que Rommel resultou gravemente ferido, quando a sua viatura foi metralhada por caças britânicos (17 de julho; convalescente destes ferimentos, Rommel suicidar-se-á a 14 de outubro). Fora no conhecimento destas condicionantes militares que Rommel defendera que o desembarque teria que ser rechaçado nas próprias praias, logo no decurso das primeiras horas. A ideia, só aparentemente mais razoável, de manter o grosso das forças em reserva, afastadas da costa, e de as fazer posteriormente convergir sobre o local do desembarque, fosse ele na Normandia, na Bretanha ou no Pas-de-Calais, não tomava devidamente em linha de conta o efeito paralisante do esmagador poder aéreo anglo-americano. No início de Overlord os Aliados dispunham de 11 500 aviões (incluindo 6000 caças e a própria força de bombardeiros pesados, força que interrompera por breve período a ofensiva estratégica sobre o território alemão). Por oposição, a Luftwaffe dispunha no teatro da Normandia de uma força de 800 aviões (com 300 caças), que executaram apenas 100 missões durante o crucial 6 de junho, o D-Day.

o mais pesado martírio A comparação bruta das perdas humanas sofridas na Frente Oriental versus na Frente Ocidental é um exercício ingrato. Sem qualquer dúvida, entre os vencedores da Segunda Guerra Mundial, a União Soviética leva a palma do mais pesado martírio: 26,6 milhões de mortos é um número plausível. Estado mais sacrificado não houve, pois Hitler projetara a Leste uma guerra de escravização e de extermínio. Ora, este facto tem relevância para a atualidade pois o terrível número acima apontado está na origem do temor russo de nova agressão – e aqui, o que outros considerarão paranóia, os próprios russos designam de cautela. As Marchas do Regimento Imortal, anualmente organizadas na Rússia, têm bênção oficial, é certo, mas também gozam de genuíno apoio popular. Como poderia ser de outra forma? Mais de vinte e seis milhões de almas, insista-se. Muitas das perdas militares soviéticas resultaram não só da ferocidade do agressor nazi mas também da insensibilidade dos próprios altos comandos soviéticos, pródigos no verter do sangue dos seus soldados. Quantos soldados não foram ceifados, em vaga de assalto após vaga de assalto, frente às metralhadoras alemãs, cujos canos quase derretiam de tanto dispararem. As suas mortes poderão ter sido menos úteis, mas não menos heróicas. Que estes soldados tenham invocado o nome de Estaline nas suas últimas palavras – tantas vezes assim aconteceu – é compreensível. As suas próprias mães não os censurariam por isso.

Passemos ao campo ocidental, onde as perdas da Grã-Bretanha e dos seus domínios foram da ordem de meio milhão de mortos militares (para 67.100 civis mortos) e as dos Estados Unidos de cerca de 416.800 mortos militares (para apenas 1700 civis mortos – bênção do resguardo proporcionado pelo continente americano). É evidente que os números anglo-americanos empalidecem perante a hecatombe na União Soviética. No entanto, não há que diminuir o impacte da guerra tecnológica imposta pelas potências anglo-saxónicas ao Reich alemão. Em particular, atente-se às baixas sofridas pela armas aéreas inglesa e americana quando do bombardeamento estratégico da Alemanha. No caso inglês, por cada 100 aviadores envolvidos, 45 morreram, 6 foram gravemente feridos, 8 foram capturados, num total de 55.500 mortes (incluindo cerca de 10.000 canadianos). As fatalidades na força área norte-americana são comparáveis. Como é evidente, o impacte destas cerca de 100.000 mortes no evoluir da guerra é, verdadeiramente, um caso à parte. Quando o desembarque na Normandia ocorreu, a Alemanha sofria já de uma penúria de aviões e de combustível, consequência direta dos bombardeamentos diurnos sobre as instalações industriais aeronáuticas (fevereiro de 1944) e de refinação petrolífera (maio de 1944). Concordantemente, a quase ausência da Luftwaffe nos céus da Normandia foi notória: recorde-se o, já atrás referido, magro total de 100 missões alemãs no decurso do D-Day.

Em setembro de 1944, a Alemanha tinha de alguma forma sustido o ímpeto do avanço dos Aliados nas duas frentes, atrasando assim o seu colapso final em alguns meses para a primavera do ano seguinte. Só pode causar espanto – a palavra admiração soa algo desajustada, face ao carácter criminoso do regime nazi – a resiliência e o espírito de sacrifício das forças armadas alemãs que, passados os anos iniciais dos sucessos da blitzkrieg, se tinham transformado numa temível força defensiva. Presidindo à tragédia alemã, o génio maligno de Hitler, dominando tudo e todos, isolado da população mas omnipresente nas mais ínfimas exações da tirania nazi. Até que, transformado numa ruína física, mas não mental, note-se, com as tropas russas a poucas centenas de metros do bunker berlinense, o Führer encostou a sua pistola à têmpora direita e decidiu finalmente libertar o povo alemão do seu feitiço diabólico. Doze anos e três meses haviam passado desde 30 de janeiro de 1933, quando Hitler, recém-empossado Chanceler, havia saudado os seus entusiastas seguidores, que frente à Chancelaria desfilavam triunfalmente empunhando archotes. A voragem do incêndio assim ateado iria poder finalmente extinguir-se, após ter consumido dezenas de milhões de vidas europeias.

Um assunto muito sério Conclua-se esta resenha regressando à edição de 8.6.2019 do Público. No seu Diário, Vasco Pulido Valente, tantas vezes controverso, por vezes verrinoso, mas nunca banal, observa: “As comemorações do desembarque da Normandia relembraram-me que a idade das tropas aliadas andava pelos vinte e tal anos. É quase assustador pensar na autoridade social que foi precisa para esta geração ser recrutada para um combate de morte a mais de cinco mil quilómetros de casa. Hoje não seria possível”.

Hmmm. Quem sabe? Em contraponto, noto que no dia 4 de junho Theresa May ofereceu a Donald Trump uma cópia da versão anotada por Churchill da Carta do Atlântico (Atlantic Charter). Este documento de intenções, que ainda hoje fazem boa leitura, foi emitido por Churchill e por Roosevelt a 14 de agosto de 1941. Durante uma conferência preparatória, serviços religiosos foram celebrados no convés do HMS Prince of Wales, ancorado então numa baía da Terra Nova. Eis a fotografia, tirada no domingo, dia 10 daquele agosto de 1941.

Tomando o mote de Vasco Pulido Valente, mas optando pelo tom interrogativo: seria hoje possível ver a primeira-ministra britânica e o Presidente dos Estados Unidos fotografados em tal circunstância? Refira-se um facto que dá uma dimensão trágica a esta verdadeira missa in tempore belli: no dia 10 de dezembro seguinte, o Prince of Wales seria torpedeado pela aviação japonesa nos mares da Malásia, arrastando para a morte mais de trezentos elementos da tripulação; o capitão Leach, comandante do navio, e o almirante Phillips, que capitaneava a esquadra inglesa naquela zona, incluíam-se entre as vítimas mortais. Assim, muitos dos homens que entoam hinos no convés daquele navio têm precisamente quatro meses de vida.

A guerra é um assunto muito sério, facto que as populações europeias, embaladas por décadas de paz, parecem ter recalcado. Nesse particular, Teresa de Sousa tem razão: “Convém nunca esquecer a História”. Assim, comemore-se o D-Day, que abriu a “Segunda Frente”, irrealisticamente solicitada por Estaline aos anglo-americanos desde 1942. Mas recorde-se também a Operação Bagration, desencadeada cerca de duas semanas mais tarde, para alívio de Roosevelt e de Churchill, quando rugia a batalha da Normandia. Que as dissensões do presente não ofusquem a verdade histórica. A enormidade do que se passou há três quartos de século torna qualquer revisionismo de hoje mesquinho.