Até ao ano passado, na Arábia Saudita, um país com mais de dois milhões de quilómetros quadrados, havia apenas uma sala de cinema, inaugurado em 1983, em Khobar, a terceira cidade saudita. Em 2018, o Ministério da Cultura autorizou a construção e abertura de novos cinemas — o objetivo é que, até 2030, estejam em funcionamento 300 cinemas, com 2000 ecrãs. Logo em abril, pela primeira vez em 35 anos, abria uma nova sala de cinema, em Riade. Há seis meses, a segunda, na capital económica, Jidá. A cidade onde nasceu, cresceu e continua a viver (depois do interregno dos anos em que estudou cinema em Londres) a realizadora Shahad Ameen.
Em 2014, chamou a atenção em Toronto com a curta-metragem Eye & Mermaid: a história da filha de um pescador de pérolas que um dia descobre que as pérolas vêm de sereias, que os pescadores maltratam. No último mês passou por Lisboa, onde está a ser feita a correção de cor do seu próximo filme, a sua primeira longa metragem: Scales. Regressando à mesma história e à mesma menina, agora a última mulher que resta numa sociedade em que os pais sacrificam as filhas atirando-as ao mar, para se transformarem naquelas mesmas sereias. Neste fim de semana, passou pelo FEST – Novos Realizadores Novo Cinema, que termina hoje em Espinho, com a exibição dos filmes premiados, onde nos deu uma entrevista. Sobre cinema e sobre o cinema da Arábia Saudita – que tem, ironicamente, como nome maior uma mulher: Haifaa al-Mansour -, sobre a Arábia Saudita, sobre as suas mulheres e sobre o que, nesse caldeirão, a fez querer contar as suas histórias. “Poderia ter sido escritora mas, para mim, a ideia de contar uma história visualmente era fascinante, especialmente porque era uma coisa que não tínhamos.”
As histórias de Eye & Mermaid e de Scales surgem como metáforas bastante claras para a condição das mulheres na Arábia Saudita – se quisermos, em todo o mundo. A novidade é que esta menina, a filha do pescador, não se resigna ao seu destino. Nesse sentido, essa personagem fala também sobre a tua vida, sobre porque fazes filmes e te tornaste realizadora tendo nascido num país onde, até muito recentemente, não havia sequer cinemas?
Nem por isso. Sempre soube que queria ser escritora, desde criança, talvez poeta, algo assim, mas a razão pela qual decidi ser cineasta ou realizadora teve a ver com uma necessidade de contar histórias sobre uma nação bastante negligenciada nas histórias que se contam. Uma nação com tantas histórias que não são partilhadas.
A Arábia Saudita.
Sim. Durante todo este tempo, não tivemos cinemas. Acabaram de abrir os primeiros. Temos literalmente dois filmes sauditas [estreados comercialmente no país]. Portanto, para mim, teve a ver com uma vontade de fazer filmes que representassem a nossa identidade, as nossas experiências, quem somos, como árabes, e o que as nossas histórias significam para nós. Porque, mesmo em Portugal, uma pessoa vai ao cinema ver produções americanas, e eu questionava-me, desde criança: porque é que não vejo aqui pessoas que me representem, que representem a minha identidade e a forma como vejo o mundo? Foi por isso que me tornei realizadora. Poderia ter sido escritora mas, para mim, a ideia de contar uma história visualmente era fascinante, especialmente porque era uma coisa que não tínhamos. E na verdade comecei de uma forma muito política, muito centrada em questões sociais. Acho que é uma coisa que acontece com a maior parte dos realizadores na região, começarem por aí.
Com a ideia de que vão mudar o mundo?
Exato. Os meus primeiros filmes foram muito isso: muito centrados no islão, muito centrados na cultura árabe, muito cheios de boas intenções. Mas a verdade é que as boas intenções não falam sobre os verdadeiros conflitos. E quando olhei de forma honesta para o que estava a fazer. Quando escrevi o Eye & Mermaid tinha uns 24 anos, já conseguia perceber o que tinha para contar sobre mim, já não queria mudar o mundo – queria mudar, sim, os meus próprios obstáculos, a minha experiência.
Foi importante nesse processo também a distância que te deram sobre a tua cultura e sobre o lugar onde cresceste os anos que passaste fora a estudar cinema, na University of West London?
Muito. Quando regressei de Londres – e voltava sempre durante as férias, mas um regresso de duas semanas não é suficiente para apreender os pequenos detalhes – fiquei mesmo: “O que é que se passa com estas pessoas?” Fiquei mesmo chocada com a resistência à mudança que uma cultura pode ter. Como pode ficar agarrada a questões que não são sequer de identidade, agarrada a tradições que já não deveriam existir. Antes disso, abraçava completamente esse lado, para mim ser árabe, ou muçulmana, vem com um lado positivo e um lado negativo. Ao fim de alguns anos, percebi que não tinha que abraçar o lado negativo, aquilo que me era ensinado como mulher: “Essas são as vossas ideias, é o vosso ponto de vista.” E estou mesmo feliz por isto, por agora as pessoas terem começado a perceber que nem tudo na nossa identidade e na nossa cultura é bom ou está certo, e que nem tudo tem de ser assim. Temos que agarrar o lado bom.
Ou nem tudo tem de ser sobre a cultura islâmica.
A cultura islâmica está muito misturada com a cultura árabe. Mas, sim, foi assim. Comecei por filmes sobre conflitos sociais e depois fui-me tornando numa pessoa e numa realizadora bastante egoísta. Quero falar sobre a minha experiência, a minha visão do mundo, a forma como lidei com ele enquanto crescia, a forma como vejo as mulheres ou a forma como me vejo a mim – ou como os outros me veem, a mim e a outras raparigas. A forma como vivemos o mundo, como lidamos com a desigualdade. Os meus filmes veem dos meus conflitos interiores como mulher num país onde as mulheres são tratadas como cidadãs de segunda classe. É uma experiência muito individual que tento colocar no ecrã, não estou realmente preocupada com a sociedade, para ser honesta, quando estou a fazer um filme. Neste filme, por exemplo, a minha preocupação foi ser tão honesta quanto possível. Não quero ser o tipo de pessoa que diz “vejam como sofremos”. E tenho muito orgulho neste filme, independentemente do que possam achar dele, porque sei que fui honesta com o argumento e com as personagens. Todos os meus atores, especialmente a protagonista, que é da minha cidade [Jidá] e que por isso compreendeu a história. Para mim foi muito importante trabalhar com ela nesta história porque sei que não verá o mundo como eu o vi: a feminilidade como uma coisa má e a masculinidade como uma coisa boa.
Ela não era atriz, pois não?
Fazia publicidades desde os 2 anos, depois escolhi-a para entrar num videoclipe em que trabalhei como assistente de realização e a partir daí desenvolvi uma relação muito próxima com ela e com os pais, fiz duas curtas com ela e agora o Scales. É maravilhosa.
Falaste sobre como foste moldando, na passagem para a idade adulta, a tua relação com a cultura islâmica. Mas estas histórias relacionam-se com um tempo anterior: na antiguidade clássica, na região que corresponde hoje ao norte da Síria, também Atargatis, deusa da fertilidade, era descrita como uma sereia.
Sempre que começo a trabalhar numa história que poderia ser um drama termino com uma história feita de metáforas. Sobre a realidade, mas através de metáforas. Tenho pensado sobre isto, que acontece com outros realizadores árabes, e acho que está relacionado com a forma com o falamos, como apreendemos o mundo. O Árabe é uma língua muito poética e, se olharmos para a literatura árabe, é muito metafórica, muito visual, cheia de exemplos retirados na natureza. Em relação à natureza, os sauditas são muito contemplativos por causa do deserto. Aquilo de que gosto no Scales é que não o situamos no tempo. Há metais, há algumas referências a um outro tempo, mas não se passa num tempo específico. Para mim não fazia sentido porque esta história, a história de homens que se aproveitam de mulheres, dos fracos, é eterna. Continua a acontecer como se estivéssemos sempre a andar para trás. Escolhi contá-la como se se passasse hoje, no passado e no futuro. Foi a partir daí que fomos construindo aquele mundo. Se a tivesse colocado no mundo real, não teria o mesmo poder visual que tem. Gosto pouco de usar diálogos, o que me interessa é uma forma de contar as histórias mais visual. Isto vem também de a cultura árabe ter sido tomada pela televisão, telenovelas. Fala-se demasiado. Para mim o cinema não tem nada a ver com falar.
Telenovelas egípcias?
Sim, sobretudo televisão egípcia. Imensa conversa. Para mim é muito importante distanciar-me disso e contar uma história visual em que sei que quase não vou usar diálogos mas em que recorro a todos os elementos viscerais do estado mental de uma personagem de forma a conseguir que o espetador sinta as suas emoções. Quando a pele dela começa a transformar-se em escamas ela tenta arrancá-las. É como se o seu próprio corpo se insurgisse contra ela, como mulher. E ela recusa-se, e continua até chegar a outra descoberta.
É interessante quando olhamos para a profissão do pai dela – trazer pérolas do fundo do mar, no Golfo Pérsico, uma profissão de homens – e pensar que na cultura japonesa essa é uma profissão reservada às mulheres. Há um documentário sobre isso, Ama-San, de uma realizadora portuguesa, Cláudia Varejão.
Tinha essa referência de imagens que encontrei na pesquisa, mas não sabia que era uma profissão reservada às mulheres. Uau,
Ainda sobre a questão das metáforas, de como dizes que achas que é cultural. Não virá também da situação política? Tiveste problemas com a exibição dos filmes?
Nem por isso. O Eye & Mermaid foi muito bem recebido na Arábia Saudita. A sessão no Saudi Film Festival foi uma das melhores que o filme teve, foi fantástico. Não sei se porque compreenderam a história ou se ficaram só fascinados com o lado visual, mas gostaram muito. E têm orgulho nele, mesmo o governo, e estão entusiasmados com esta longa que estou a terminar. De resto, nunca tive problemas na esfera pública. As rodagens podem ser mais complicadas – não por causa do governo, por causa das pessoas, que não estão habituadas a ver câmaras. E porque é uma cultura em que as pessoas cobrem a cara e não gosta de ter mulheres em frente a uma câmara, embora as coisas estejam a ficar melhores. Não sinto que faça as coisas desta forma para contornar a censura, conscientemente. Inconscientemente, talvez. Talvez o tenha feito para evitar alguma forma de censura, talvez tenha sido inteligente na forma como contei a história.
Pois, era justamente aí que queria chegar.
Para ser honesta, claro que vamos ter sempre coisas negativas para dizer sobre muitos assuntos, mas a forma de continuar a contar histórias é contá-las enquanto se pode. Portanto, talvez seja bom encontrar formas de contornar a censura, como faz o cinema persa. Nós podemos fazer o mesmo. Não temos de fazer um escândalo para contar uma história, podemos tocar numa data de questões importantes para a sociedade saudita e a sociedade árabe sem estarmos a meter-nos em problemas – ou a outra pessoa qualquer. Depende do tipo de realizador que se quer ser.
Algum dos teus filmes foi rodado na Arábia Saudita?
Não, mas por questões relacionadas com o financiamento. O Eye & Mermaid rodei no Qatar, porque o financiamento era de lá. O Scales foi financiado por um estúdio dos Emirados Árabes Unidos, então filmei naquela zona, em Abu Dhabi. Mas na verdade andámos à procura de outros sítios para filmar, fomos até à Jordânia.
Quando tiveste esta ideia, na tua cabeça estavam as mulheres sauditas ou uma ideia mais universalizada de mulher?
Quando falo sobre o filme, claro que é bastante universal. Mas na minha cabeça, para ser honesta, estavam as mulheres árabes. Quando estava à procura de financiamento, o que dizia às pessoas era que queria falar sobre a minha experiência como mulher saudita da forma mais visceral possível – e mais inata. Não acho que houvesse outra forma de contar a história dos nossos corpos.
Como é fazer esse caminho na sociedade e na cultura sauditas?
Difícil. Acho que em qualquer sociedade marcada pela religião – mesmo na Europa – a coisa mais difícil de se dizer é “não”. Mas assim que se começa a dizer “não”… já não se consegue parar. Acho que o mais difícil é o primeiro passo, chegar-se à primeira vez em que se diz “não”. Porque, ao fazê-lo, estamos a colocar-nos à margem da sociedade, e ao colocarmo-nos à margem da sociedade… a sociedade também é a nossa família, os nossos amigos. Estamos a colocar-nos à parte de tudo isto. Tive a sorte de não o ter feito sozinha: muitas raparigas e rapazes da minha idade fizeram o mesmo caminho ao mesmo tempo. A geração mais velha ficou onde estava, mas a nova geração está definitivamente a virar a página. Não todos – continuas a ter as conversas mais inacreditáveis com pessoas da nossa idade.
Também o conservadorismo é universal.
[Risos] Exato. A parte boa é que nesta sociedade globalizada é como se até os conservadores se sentissem embaraçados por serem conservadores. O que acontece, mesmo numa sociedade como a saudita, é que percebes que, em conversas, tentam evitar dizer certas coisas, mas acabas por apanhar algumas coisas aqui e ali. Mas muitas pessoas, não só uma pessoa, chegaram a esta grande conclusão: “Não, não temos de viver no vosso negativismo. Vocês fazem a vossa cena, eu faço a minha.”
Foste estudar para Londres mas, apesar de não ter havido cinemas durante muito tempo, há cursos de cinema na Arábia Saudita, não há?
Acredito que brevemente as universidades deixem de ser segregadas, mas por agora ainda são. Na minha cidade temos três universidades, uma pública e duas privadas, e numa delas abriram um curso de cinema. Só para mulheres.
Só para mulheres?
Sim, é a parte engraçada: nos próximos dez anos, todos os novos realizadores vão ser mulheres. O primeiro grupo de 20 raparigas formou-se no ano passado. Fiquei mesmo feliz quando ouvi falar nisto.
Como é que isto aconteceu?
É possível que venham a abrir também um curso para homens. O que aconteceu foi que esta universidade de mulheres teve a ideia e abriu o curso. Mas talvez tenha a ver com a realizadora mais conhecida da Arábia Saudita ser mulher: a Haifaa al-Mansour [n. 1974]. Talvez isso tenha criado a ideia de que é um trabalho de mulheres. É muito engraçado verificar que, no mundo árabe, quando estou em festivais, há sempre mais realizadoras do que realizadores.
Quando na Europa e nos Estados Unidos acontece exatamente o contrário.
Exato. No mundo árabe encontram-se mais mulheres. Julgo que parte da explicação tem a ver com as experiências: qualquer pessoa que seja obrigada a lidar com discriminação, terá sempre algo a dizer. Para dizer a verdade, especialmente na sociedade khaleeji [dos países da Península Arábica], os homens são… vivem o privilégio do homem branco, a que nós chamamos o “privilégio do homem khaleeji”. Ser homem no Líbano ou na Palestina não é propriamente a mesma coisa.