O PS e o ascendente de barata tonta


A solução que serviu para diversas reposições e reversões é incompatível com o modelo de construção europeia que o PS defende ou com o perfil geral da governação assente em contas certas.


Houve um tempo em que a política, como quase tudo, era linear. Podia não ser transparente ou escrutinada nos processos, mas as intenções era inteligíveis. O atual contexto da política das habilidades e dos habilidosos redobra a exigência cívica no descortinar das ideias, das ações e das manigâncias agilizadas pelos protagonistas que o país consagrou.

Depois de quatro anos de convivência conveniente numa solução governativas, protagonizada em muitos momentos por quem, em surdina, aos jornalistas manifestava desconforto com o arranjo, entrou-se na fase de “o algodão não engana”.

A solução que serviu para diversas reposições e reversões, alguns avanços ao nível de direitos de segmentos da sociedade portuguesa e um discurso oficial de fim da austeridade, é incompatível com o modelo de construção europeia que o PS defende ou com o perfil geral da governação assente em contas certas mesmo que isso implique fortes constrangimentos em funções do Estado, da escola pública ao Serviço Nacional de Saúde. Sim, é verdade que há um enorme passivo acumulado de falta de investimento, mas essa realidade incontornável não é incompatível com a proclamação do fim da austeridade ou com a profusão de cativações em despesa corrente fundamental para os serviços públicos?

De uma assentada, em apenas uma semana, o PS, pela voz do seu presidente, Carlos César, que não agiria sem concertação com o secretário-geral, como fez quase sempre em matérias nacionais, certificou que “o Bloco de Esquerda não manda na Assembleia da República nem manda no país” e que “se nós fôssemos sempre atrás do estilo de aventura e de que tudo é fácil, tudo é barato e tudo pode ser feito, tínhamos um país com uma mão à frente e outra atrás e voltávamos ao tempo da bancarrota”. De uma penada, a surdina ganha voz e reconhece que o PS, com José Sócrates, deixou o país na bancarrota – tudo o que a direita sempre disse e o inverso do que sempre defendeu todo um universo dentro do PS. Sou do tempo em que qualquer esboço nesse sentido era crime de lesa-partido, agora é doutrina oficial.

O contexto da habilidade política, para baralhar ou para dar expressão a uma diversidade consentida, deu de imediato visibilidade à visão oposta, que continua a vislumbrar futuro num caminho à esquerda sem convergências para as questões nacionais estruturais ou para a construção europeia.

Parecem baratas tontas, mais interessadas nos próprios futuros do que no futuro do país. Só isso pode justificar que não se adote uma política de reconhecimento das fragilidades e se continue a projetar no passado ou noutros a responsabilidades das evidentes ineficiências. Aliás, a ferrovia é bem o exemplo dessa vertigem. Estivemos quatro anos a ver os comboios passar, com uma narrativa cor-de-rosa perante as fragilidades existentes, e no final, depois da promoção do responsável político para o Parlamento Europeu, tomam-se as medidas que deviam ter sido adotadas no início do mandato.

É de barata tonta um membro do Governo responsabilizar os cidadãos pela incapacidade de resposta dos serviços de emissão do cartão do cidadão e pelas filas que se geram à abertura de portas porque as senhas desaparecem num ápice.

É de barata tonta, por mais que esteja em linha com a prática no setor, admitir que os gestores da Caixa Geral de Depósitos podem receber prémios de 650 mil euros enquanto os contribuintes continuam a suportar os buracos do banco e os depositantes são vergastados com um indigente serviço bancário (aumento das comissões e cortes nas remunerações), e depois do espetáculo dos prémios na TAP.

É de barata tonta ziguezaguear em temas tão relevantes como a Lei de Bases da Saúde, em que parece que o que se pretende verdadeiramente é que tudo fique na mesma, depois de se ter querido erradicar os privados da realidade, de não se investir o suficiente no SNS para o prontificar a dar as respostas de que as pessoas e os territórios precisam e para o imunizar aos constrangimentos das cativantes autorizações das Finanças para despesa corrente que sempre tardam.

Uma maioria “absolutamente inequívoca”, mesmo num quadro de manifesta indigência do PSD, de falta de fermento no CDS, de delírio no Bloco de Esquerda, de dificuldade de registo no PCP e de euforia radical do PAN, não se consegue sem uma proposta clara para os problemas do presente, muitos em órbita de negação, sem ideias inteligíveis para o futuro pós-eleitoral e com respostas sobre como se compatibilizam as divergências para fazer o que ainda não foi feito em Portugal e para gerar mais e melhor Europa.

Em demasiadas questões para querermos construir um Portugal de máximos, é preciso que os mínimos estejam assegurados, e não estão. O pior é que entrámos num renovado registo em que as descativações ou os problemas são resolvidos a toque de caixa, por via mediática ou de alarme social, e isso não é forma de governar o que quer que seja. Demasiadas navegações à vista.

NOTAS FINAIS

Escaravelho. Quanto mais alto estão no pedestal, menos vislumbram a realidade que estão a construir. Segundo foi noticiado, para o Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) da Amadora, chamar “filho da puta” a um agente da autoridade pode ser considerado um “grito de revolta” e desferir um murro num polícia pode ser uma forma de “defesa da força física exercida pelo agente policial”. Não me revejo em nenhum abuso, mas muito menos na fragilização das forças de segurança.

Gafanhoto. A elaboração das listas de deputados é sempre um bom momento para avaliar o real valor da democracia, da descentralização e da valorização dos territórios como espaços com potencial próprio.

Libelinha. Parece que as mesmas avantesmas que se dedicaram durante os últimos anos a traduzir notícias de jornais portugueses para fazer chegar as traduções aos patrocinadores internacionais do Sport Lisboa e Benfica se dedicam agora a tentar desfazer transferências. Enquanto não se focarem no trabalho lá de casa, o destino é serem vistos pelo espelho retrovisor. E talvez apanharem com a poeira levantada por quem vai à frente.

Escreve à segunda-feira