Um velho que morre é uma biblioteca que arde, que se fecha. Tenho-me cruzado algumas vezes com esta frase nos últimos tempos – a última vez foi numa publicação do prof. Galopim de Carvalho, que justificava a sua insistência de escrever, mesmo textos longos, enquanto as portas estão abertas. A ideia tem sido atribuída ao escritor malinês Amadou Hampâté Bâ, com origem num provérbio antigo, mas a autoria é incerta. Não deixa de ser atual: temos a perfeita noção da finitude, mas não nos lembramos tanto como devíamos de perguntar o que podemos fazer enquanto é tempo.
Noutro dia fomos à procura das origens de uma bisavó em Viana do Castelo. Na rua, nos cafés, já ninguém se podia lembrar. Na igreja, lá estava a letra perfeita num velho livro de assentos, a data de batismo, os pais, o lugar onde viviam, do tempo em que nem as ruas tinham nome. Guardou-se uma fotocópia como se fosse uma relíquia, uma forma de alcançar um capítulo antigo, o resto tornou-se irrecuperável. Como terá sido a vida ali? Quando começamos a perder as pessoas de quem gostamos, percebemos que não vamos ter mais respostas.
Ando a ler A Sibila, de Agustina Bessa- Luís, a vida em torno da Casa da Vessada, um desfilar de personagens, expressões e momentos em que vou misturando na minha cabeça as histórias que oiço contar à minha avó da meninice na aldeia, num tempo um pouco posterior mas não assim tão diferente. E de tudo o que tem sido dito sobre Agustina, dou comigo a pensar quem me dera que houvesse um romance assim a contar a história das nossas “casas” e das diferentes gerações de homens e mulheres que lá passaram, que desse um fio condutor às fotografias penduradas nas paredes e que, a certa altura, deixamos de saber de quem eram, como foram tiradas, de onde viemos, o que custaram.
Não poderíamos ter ido tomando notas, uns depois dos outros? E não vai ser pior daqui para a frente? A nossa memória estende-se para um espaço cada vez mais abstrato, em backups automáticos, com a internet e o digital a tornarem-se uma espécie de disco externo, como têm sugerido alguns estudos, para já pouco conclusivos, sobre se estará a mudar alguma coisa no nosso cérebro. “Uma vez que agora temos a maioria das informações factuais sobre o mundo literalmente na ponta dos dedos, isso parece ter o potencial para começar a mudar a maneira como armazenamos e, eventualmente, valorizamos factos e conhecimentos na sociedade e no cérebro”, disse recentemente Joseph Firth, um dos autores de um artigo sobre o “cérebro online” publicado, no mês passado, na revista World Psychiatry, com uma revisão dos estudos feitos até ao momento.
Os testes de ADN vieram refinar as velhinhas árvores genealógicas, mas a história pessoal é outra coisa, precisa de outro tempo. Há, como em tudo, empresas que se têm dedicado a isso, ajudam a entrevistar, a escrever, a preservar a memória de perfeitos anónimos, como dantes era hábito apenas das figuras com algum relevo. De preferência, impressa. Mas talvez pudesse ser um hábito mais incutido, sobretudo quando vamos tendo a nítida sensação de que as memórias que estamos a gravar são cada vez mais voláteis, centenas de fotografias que se tiram e já nem nos damos ao trabalho de escolher.
Ouve-se falar de quem, num tempo de vidas cada vez mais expostas, volta a ter diários em papel, o hábito de tomar nota dos seus dias para si, escrever para lembrar, sublinhar memórias. E há projetos coletivos que poderiam ser replicados, aproximando gerações e, ao mesmo tempo, alertando para essa imensidão de bibliotecas que se podem perder se não lhes dermos atenção, para que comecemos cedo a perguntar, a desenhar as personagens, a compor as pequenas histórias para lá da história maior. Num empreendimento coletivo que não nos deixe perder a oportunidade de acrescentar esses capítulos da nossa vida de que vamos mais tarde à procura, contra o tempo.
No Brasil, um projeto curioso e simples: o Instituto História Viva, lê-se na página desta ONG que trabalha em hospitais, resgata histórias de idosos e transforma-as em contos infantis, permitindo uma ponte entre gerações. Em Lisboa foi apresentado no início do ano o resultado de oficinas comunitárias de memória que envolveram a rede de bibliotecas de Lisboa e procuraram recuperar a vida dos bairros de Marvila e Penha de França há 30 e 40 anos. Dar voz à população mais velha para construir comunidade, disse na altura a vereadora da Cultura, Catarina Vaz Pinto. Tantas histórias por contar e escutar enquanto é tempo.
Escreve à sexta-feira