A vida nas sociedades modernas depende das convenções e muitas delas assentam num equilíbrio difícil entre a ficção e a conveniência. O papel-moeda já teve subjacente um contravalor, resultante do entesouramento pelo banco emissor de metais preciosos que garantiam o papel-moeda. Com o fim do padrão ouro, as reservas de metais preciosos detidas pelos bancos centrais representam uma percentagem ínfima do valor nominal do papel-moeda.
A moeda fiduciária tornou-se a modalidade exclusiva, assentando o respectivo valor nas realidades económicas subjacentes (balança comercial, balança de transacções correntes), a que se acrescentam alguns invisíveis importantes (o papel dos EUA nos serviços de segurança e defesa à escala planetária tem um peso importante na aceitação e valor do dólar).
O negócio do papel-moeda tornou-se um monopólio estatal e, para alguns Estados, um negócio supra-estadual que lhes fez perder soberania monetária. Os estados federados nos EUA perderam esta soberania a favor da reserva federal e, numa união monetária completa, não têm razão para saudades. Já na zona euro, as coisas são, como bem sabemos em Portugal, um tudo-nada mais complicadas. Por esta razão, a crise do euro ameaçou a Grécia com a expulsão da união monetária ao mesmo tempo que, com crónica regularidade, repete a ameaça em relação a outros Estados-membros. Por estes dias, as atenções viram-se para Itália, com o acelerar do passo em direcção a um procedimento por défice excessivo. No bel paese, as almas soberanistas que produzem o pensamento económico da Lega (que já alastrou, perdendo o apodo Nord) fizeram aprovar uma moção do Parlamento que insta o Governo a criar títulos de dívida pública com curso legal.
O fenómeno das moedas paralelas (ou da dívida paralela) tem grande tradição, remontando a sua generalização à crise económica de 1929. Em Portugal, todos teremos nas gavetas dos nossos avós milhões de lindas “cédulas” emitidas pelas diversas câmaras municipais, prometendo pagar o que nunca pagaram. Na Alemanha de Weimar, a “moeda fisiocrática” tinha um valor nominal crescente em cada mês sucessivo, valor escrito por antecipação, para estimular o entesouramento e fazer baixar a inflação (e claro, teve o efeito contrário…). Pela Argentina, país que com mecânica regularidade enfrenta a bancarrota, já existiu neste século uma moeda paralela, o patacòn, para fazer face à desvalorização do peso.
Se a proposta italiana, conhecida como mini-BOT (Buoni Ordinari del Tesoro), for concretizada, poderá ser dado um primeiro passo em direcção à possibilidade de abandono do euro, já não como sanção imposta por Bruxelas, mas como acto de recuperação da soberania. Do ponto de vista do futuro da UE, um abandono do euro pela Itália teria consequências muito mais importantes do que a ameaça de um eternamente adiado Brexit.
As moedas paralelas desempenham não só o papel de reserva fiduciária de valor, mas também o de instrumento de troca, permitindo trocar bens e serviços por moeda. No exercício da função de troca, as prerrogativas do Estado soberano estão menos presentes e nenhum Estado se considera ameaçado pela proliferação de cartões de crédito. Não obstante, o anúncio, feito esta semana, pelo Facebook do advento da “criptomoeda” Libra assusta. O apetite é grande – com o FB estão Visa, Mastercard, Paypal, Vodafone, Uber, Spotify, Booking, Ebay. Prometem segurança e privacidade. E não se riem. E prometem ajudar os pobrezinhos, os que têm smartphone mas não têm conta bancária. Se a Madre Teresa ressuscitasse, iria a correr para Menlo Park.
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990