Uma cultura orgulhosa de si não deixa morrer os seus sem se pôr em sentido, não permitirá que as baixas se somem nas suas linhas sem dar as salvas. Um evidente e até aflitivo sinal do miserabilista em que a cultura soçobra, na afetação de uma pose recolhida, é percetível quando figuras de algum relevo desaparecem atrás do nome, e o próprio luto já não tem do que se valer. “Hoje, a dor não justifica nem uma gravata preta”, lamentava-se Nelson Rodrigues. Quase parece um número de circo, espalhafatoso, quase cómico, mas repetitivo e vazio, um ritual sensaborão.
É o obituário quem parece ter já lido a notícia da sua morte. Ouve-se o velho comboio de corda da pieguice, velharia, sentimentalismo, e o cadáver aparece boiando pelos fundos, sem que ninguém se lhe chegue. E assim se despede qualquer um, com aquelas duas lágrimas de emoção de que falava Kundera – uma logo a seguir à outra. A primeira quase ferindo o rosto, de espanto e uma ponta de terror, e a segunda, logo de seguida, engolindo a primeira na sua comoção. Esta segunda lágrima demora-se no rosto, deliciada com isto de nos comovermos com a morte de alguém. O morto, então, mais parece um pretexto, uma boa desculpa para esse desejo de descarrilar, ficando essa paisagem desoladora que obriga a rever a célebre frase de Guimarães Rosa: “O homem morre para provar que viveu”. Hoje, o homem morre, mas é para que os outros, nem que por um momento, se sintam vivos. De resto, está claro que isso de puxar muito para si o assunto da morte é, na verdade, um desejo medroso de se acercar da vida.
Neste efeito de amnésia no qual estamos lançados, parece que o excesso de emoção foi o que produziu a senilidade que já não sabe aproveitar-se da memória. E aqui talvez valha a pena recordar a notável frase de Proust… “Dizemos a morte para simplificar, mas há quase tantas mortes quanto pessoas”. É isto o que parece ter-se perdido, essas diferenças não tão subtis quanto se pensa, e que impedem a morte de se tornar um apagamento. De outro modo, a morte torna-se um ato de achincalhamento e, a partir dela, todos são desapossados dos seus feitos. Essa morte que se impõe como “um hiato absurdo entre um ser e a sua memória”, nas palavras de Clara Pinto Caldeira, é o que nos diz que os vivos perderam a capacidade de se medirem face a ela, sentindo-se encorajados.
“Dizem que ela nos conta. Nada conta quando tudo é morte”, escreve Clara Pinto Caldeira. “Morte é isto, esta fronteira que se perde de vista, que não tem vista. Morte é os olhos não serem nada, não verem nada, não se olharem sequer. Morte é isto, um nome existir só em letras lapidares”.
Tudo o que tem a oferecer é esse prestígio patético dos estados eufóricos, essa desmesura sentimental que, logo depois de se ter visto expressa, só resta retirar–se, envergonhada. E, por isso, chega a existir uma espécie de convicção ferida naqueles que adoecem pois, como disse Nietzsche, chegados a este ponto, “até os que estão a mais se fazem importantes com a sua morte, até a mais oca das nozes quer ser partida”.
Para nos vermos perante uma morte que não faz já grandes distinções, que não tem lotes nem campas mas se basta como extensa vala comum, e as figuras da nossa cultura caíssem na sua rede, desamparadas, foi preciso que se instalasse primeiro uma terrível desconfiança. José Cardoso Pires, num texto escrito no Diário de Lisboa, em 1972, a propósito das homenagens post mortem a Alves Redol, lembrava que já Sá-Carneiro, num dos últimos poemas que escreveu, tinha pedido que o deixassem ir de burro. Sair sem que os mais habilitados coveiros se aproveitassem dele para uma dessas farras literárias. Dizia Cardoso Pires que essas homenagens “são em muitos casos a apropriação abusiva de uma existência que se recusou a vénias e a submissões e, noutros, por isso mesmo, uma vingança final sem contestação”. Assim, quando a morte abre as suas portas desconhecidas, logo se abre margem à “impunidade sobre a memória, que se alarga à conjetura, à torção da imagem desaparecida”. É natural, pois, que quem aprendeu a fugir das comemorações burocráticas não queira levar no fim com uma “morte burocrática” e fuja ao equívoco, como fez o Mário, que tomou a sua porção de estricnina, “preferiu umas dores no lado esquerdo da alma/ uns disparates com as pernas na hora apaziguadora/ herói à sua maneira recusou–se/ a beber o pátrio mijo/ deu a mão ao Antero, foi-se, e pronto,/ desembarcou como tinha embarcado// Sem Jeito Para o Negócio” – isto segundo a homenagem, essa a sério, do outro Mário, o Cesariny (de Vasconcelos).
É um dilema complicado, e até há muito quem tenha aconselhado poetas e não só a escolher o seu veneno, ou pelo menos o lado para o qual se querem virados na hora em que a morte venha saber deles. (“Constrói, pois, a barca da morte, que vais partir/ na mais longa viagem, para o esquecimento”, escreveu D. H. Lawrence.) Mas se há seguro para muita coisa, e até em caso de morte, decididamente não há é contra os vivos. E como Cardoso Pires notou, mesmo se Sá-Carneiro procurou evitar “o discurso à beira do coval, para não ficar irmanado com os medíocres ilustres”, o que não pôde foi evitar que estes ou os seus procurados se vingassem. Logo “puseram gravata preta e enterraram-no em 30 linhas de texto a uma coluna na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira”. E para que se perceba a frieza do prato que lhe foi servido, lembra que, “mais adiante, no talhão seguinte, letra D, ergue-se o retrato do Dr. Júlio Dantas em canteiro de 155 linhas de prosa florida”.
Seja como for, nem as maiores precauções nem todo o pessimismo devem servir de desculpa para que não se cumpram os mínimos. É certo que as redações dos jornais encolheram de forma dramática nos últimos anos, mas mais certo ainda é que os que se dizem da cultura, e enchem a boca dela para perorar e exigir a cabeça de quem, por exprimir um juízo diferente dos seus, nos jornais, ainda segura a retaguarda, e algum registo (das presenças, das ausências…), garantindo os serviços mínimos no que toca à memória, são os primeiros a vir, ufanos, gabar-se de que não compram jornais e meter tudo no saco dos tabloides, para salvarem a pele. “Só lhes interessa o que é passado para não comprometerem o presente em vigor”, notava Cardoso Pires. “E, vai daí, vestem de luto a História da Literatura, que se transforma numa espécie de museu com legendas de requiem”.
Uma cultura que só sabe lidar com o passado segundo “os protocolos da efeméride” denuncia, afinal, um desejo de afastar de um campo onde sempre foram preponderantes as tensões marciais toda a crítica, todo o atrito e, no fundo, a exemplaridade do ato literário, que ameaça a todo o momento contaminar a vida. Por isso é que, diante da morte de um escritor ou de um vulto da nossa vida cultural, surgem tantas reservas. Estamos todos cansados da “necrofilia literária”, essa que, como diz Cardoso Pires, se instituiu “como regra profilática e em resultado último preocupa-se em enterrar os vivos e comemorar os mortos”.
Dito isto, ninguém apagará os tantos atos de justiça, os esforços necessários para recuperar e honrar a memória, o próprio conflito que leva a que as homenagens funcionem como um eixo central na fixação de um legado. O poeta espanhol Carlos Marzal reagiu às notícias que “matavam” Biedma dizendo que, no seu caso, toda a habitual estupidez e curiosidade aumentaram. “Pois a quem os demónios/ desejam esquecer, hoje em dia, não lhe outorgam desgraças,/ nem amor insatisfeito, nem amor correspondido que se apagará,/ convertem-no antes em carne dos jornais”. E logo conclui que “[o] pior da morte não é a nossa própria morte,/ mas que a nossa morte seja notícia/ segundo o juízo de uns quantos. Aqueles que mais ignoram,/ mas não deixam de escrever,/ levantam as cinzas de não importa que morto/ em nome de um dever para com os seus leitores,/ que ninguém lhes reclama”.
Este poema de Marzal abre com uma interrogação de um outro poeta, um verso estarrecedor em que Cernuda se pergunta: “Ouvirão os mortos o que os vivos logo dizem deles?”
Importa cada vez mais que a morte do outro nos obrigue ao respeito que teríamos diante da nossa própria morte. Se a nossa morte é um incidente que chega a ser-nos estranho, pois assim que nos toca já nos aliviou do assunto, e, desde logo, das burocracias, como lembra Michel Schneider, é a dos outros que em grande medida nos constitui, é na perda que as nossas forças mais se medem com essa forma de “desapropriação absoluta”. Assim, na verdade, a nossa morte é a estreia de uma peça na qual apenas nos é dado participar nos ensaios. Por isso, só assistimos ao espetáculo final quando se trata da morte dos outros.
Por isso mesmo é tão importante que não se ceda aos modos de instrumentalização da morte dos outros, mas que a cultura saiba assumir plenamente as suas responsabilidades, não se bastar com simplificações nem com atos cerimoniais sem uma consciência aguda de quem são as figuras que pretendemos recordar e homenagear. Tantas efemérides mais não são do que vislumbres de uma casca, o corpo depois de sujeito aos trabalhos de taxidermia. Por isso é que Jorge de Sena, na maravilhosa homenagem que dedicou a um dos seus mestres e amigos, Manuel Bandeira (“O Manuel Bandeira que eu conheci e que admiro”, 1977), se apressou a contar alguns episódios que testemunhou, histórias que, na sua simplicidade, revelam algo de profundo, dizem muito de um caráter, e fê–lo consciente de que era importante inserir essas impressões no “corpus da imagem de Manuel Bandeira, antes que lhe tirem as vísceras da alma, para o embalsamarem para a posteridade”.
Algumas cautelas são aconselháveis sempre que se lida com alguém que já não terá como corrigir as provas, e é sabido que o formulário no que toca a registar novas lendas no cartório cultural não admite margem para grandes variações, ou sequer nuances, resultando as mais das vezes numa narrativa um tanto anedótica. Infelizmente, basta ir aos necrológios, perceber que tantos hoje morrem sem ter o direito sequer a uma espécie de história, e se fosse dado aos mortos lerem pelo menos o jornal do dia seguinte, que estranho não seria verem-se reduzidos já a um tão pobre osso, esse “curriculum cadastro vizinhança”. E, às vezes, nem isso. Nem a notícia de que morreram, e talvez até os próprios do lado de lá se belisquem para, não sentindo já a carne, terem a certeza.
É cada vez mais difícil escapar-se à sensação de que começa a não haver escolha. Se não esquecemos que, algures por aí, há uma cova aguardando por nós, com raríssimas exceções, o mais certo é que, querendo ou não, iremos de burro. E se pode consolar-nos a ideia de que talvez nem disparates se oiçam logo depois de morrermos, será essa morte completa, esse silêncio absoluto uma perspetiva menos desoladora para quem buscou ao longo da sua vida dedicar-se às coisas do espírito, essas que ambicionam deixar, pelo menos, um rasto na terra e na memória dos homens?
Em ano de centenário do nascimento tanto de Sena como de Sophia, com a facilidade que tem havido em reconhecer as virtudes da poeta, face às dificuldades que persistem, 40 anos depois – a morte de Sena fez 41 anos no passado dia 4 de junho -, em reconhecer este tão truculento e, às vezes, tão desagradável génio? Não é isso sinal de uma cultura que não tem já estômago para engolir certos golpes, e que apenas acolhe no seu seio e celebra figuras diáfanas, certamente inspiradoras, mas não tumultuosas?
Cardoso Pires defendia naquele artigo que mais valia a “ignorância do que o saber errado”. E reforçava: “Antes o silêncio eloquente do que a ‘concessão tolerante’ de uma memória sem total consciência da dimensão do homem que nela se evoca”. É fácil dar-lhe razão mas, ao mesmo tempo, não deixamos de ter a sensação de que não imaginaria que, apenas duas décadas após a sua própria morte, estivesse em perigo a memória até de “um português de projeção internacional”, como ele insistia que Alves Redol era, insurgindo-se contra uma evocação em que este era celebrado como “um escritor ribatejano”.
Se em tempos se esperava que a morte nos arrancasse a uma nova fonte, fazendo de nós as “crianças de uma nova vida”, hoje, quem se prepara para morrer já não perde tanto tempo a contemplar a sua posteridade. Em Mortes Imaginárias (ed. Cotovia), Schneider, ao traçar os retratos de uma série de escritores captados nos seus derradeiros momentos, diz que o fim não é necessariamente um mal, isto “se acreditarmos em vários destes moribundos, boquiabertos e fascinados perante a maravilha de um novo traje por estrear, de um novo vestido para experimentar: de uma nova vida que luz e trepida”. Mas e se, para lá dessas fantasias que entretemos em relação ao além, não nos restar grande confiança neste mundo que se deixa? E se a morte for cada vez mais um vinco entre dois vazios?