Mete-se a ambição na cabeça de umas luminárias que tomam da vida apenas a ideia de uma sequência e pode esperar-se um desastre que frustra até a contemplação. Não se encontra nele a beleza da catástrofe, não há margem para o espavento, e os sentidos deprimem-se. Esta vontade que deu a uns de unir a língua decapando-a, diz bem da idiotice de quem aborda tudo segundo o princípio da utilidade. Procuraram livrar-se das dobras, desses refegos onde os usos íntimos de um idioma criam os fungos que lhe animam a flora intestinal. E esperavam cortar tudo isso a eito, como quem toma um clister e evacua. Esperavam alisar a superfície ao fim de séculos… só podia dar em asneira. Pior ainda vai ser demovê-los, vê-los nos seus abrigos, refugiados, contando que o temporal amaine.
Entretanto, vai ficando margem para que quem trabalha a língua, não como estes amanuenses, mas nas repartições mais acima ou abaixo, os funcionários celestes e os infernais, repensem esse divórcio que leva a que se leia o português que vem de outras bandas como mero exotismo ou qualquer coisa truncada. Pensando nisso, entre nós, sem ser aquele modo afectado de usar o tom abrasileirado das telenovelas que serviu para uma hospedeira de voo ser festejada, só Herberto Helder pôs a coisa em termos incitantes, ao enaltecer a língua (en)cantada que vem do uso dos cantores populares brasileiros. Ele tomou o pulso a esse ensejo da língua portuguesa como na sua expressão múltipla e radiante, “mais sucessiva,/ mais falada em música,/ com mais atenção inspirada, digo/ (…) com mais respiração”.
Mais ardente, bebida mais junto às correntes do “rio camoneano”, achava-se o mundo ao recolher as redes desse idioma refundado: “a minha língua na tua língua em todos os sentidos sagrados e profanos,/ saliva, muita, e temperatura animal”. Mas e depois de “a faca não corta ao fogo”? Talvez, como temia Cesár Monteiro, voltou tudo à telenovela.
Se há muito ficou clara a noção de que o grande capital da nossa presença no Brasil é a língua, parece que a querem cingida a exercícios de vocalização, não a deixam dizer muito, preferindo que se fique pelo trauteio, ao invés de lançar de novo os dados. E, depois, há esses escritores que se esperam fazer cidadãos do mundo num português o mais raso possível, esse que o inglês técnico possa apanhar do chão, ajudando-o com as malas do folclore de campanário, com estes escritores sempre de velas abertas para os mais caquéticos ventos da tradição. Ora, há muito que Jorge de Sena advertiu que esta mentalidade de povos subdesenvolvidos é ainda uma mentalidade ‘colonial’. Assim, se “em geral, mesmo as pessoas mais cultas vivem bebendo os ares do que é dito e feito no estrangeiro, e é-se tanto mais aplaudido quanto mais servil e subserviente de uma cultura estrangeira”, por outro lado, “os medianamente cultos refugiam-se num nacionalismo literário muito estreito, e não acreditam, julgando por si mesmos e pelos outros, que se possa ter independência crítica e originalidade de juízos, em face de uma cultura alheia”.
Nas últimas décadas, se a cultura nunca se transferiu para uma margem de autonomia face ao Estado, o dirigismo cultural manteve os caciques nas posições de influência, continuaram a distribuir-se os púlpitos pelas aves ornamentais e criaram-se ainda mais convénios de letra morta. Entre cá e lá, com mais ou menos mar a separar-nos, a vizinhança continua fria demais até para tocar à porta e pedir um pouco de salsa ou farofa.
E tem graça como, em tantos balanços que se fazem sobre literatura, novos autores, todos esses inventários de que tanto gosta de ocupar-se a inteligência de repartição, se vai sempre insistindo em sepultar uma ideia mais ampla do exercício da língua portuguesa, ficando só para as cerimónias a exaltação e as flores do horizonte múltiplo da língua de Camões.
É ver os 'especialistas' esgatanharem-se a decidir listas, prémios, pódiuns que no dia seguinte já ninguém lembra, uma gente atarefada que, para não ceder demasiado ao pessimismo até finge que sai, mas depois se esquece dos óculos, ou, se os põe, tem-nos embaçados, julga que já leu todos os livros, consolando-se na tristeza da sua carne, colhendo casos entre a produção de ovos no aviário nacional, obras que já nascem murchas, e que, por não arriscarem muito, mesmo nada, consolam os que já cá andam, e não têm vagar para sintonizar outras frequências, nem para o arrepio de músicas que destroçam a sua velha convicção sobre o que pode a poesia.
João Gabriel Madeira Pontes nasceu em 1992, no Rio de Janeiro, e se o tentarmos integrar à nossa escala, sendo que andam por aí jovens promessas com mais de quarenta anos, ele nem novíssimo é, mas um recém-nascido. Seja como for, publicou no verão passado o seu segundo livro, “Saúvas Avulsas”, com selo do colectivo Garupa. Num dos poemas, capta humoradamente estes sinais de aversão e divisão do território (literário, por hipótese) entre bichos de pouca moral: “os pombos que sujam/as calhas/ da hospedaria/ do Brás/ renegam/ os pombos que sujam/ a história/ da piazza san marco,/ e vice-versa./ e arrulham/ os pombos/ e fervem/ os espelhos/ de narciso,/ e vice-versa.” É uma bela metáfora para esses modos de inscrição estética que cedo se armam, criando um bloqueio, e aplicando severas taxas aduaneiras num sentido e no outro.
Haveria um ganho de perspectiva estrondoso em termos críticos se pudéssemos avaliar o que surge por cá conhecendo também o que cai nesta mesma teia do outro lado do Atlântico. O leitor, como sequiosa aranha, deveria sentir-se injustiçado se, para a sua dieta, contasse apenas com mosquinhas da fruta, sabendo que as aranhas do lado se deliciam com moscardos capazes de fazer em polpa o interior de um fruto galando-o com o seu tonitruante zumbido.
Madeira Pontes é uma bela promessa. Neste seu segundo livro, mostra já uma oficina admirável, e os seus poemas, alguns em quadras, experimentam regimes vigorosos de ritmo e som, com o sentido descascando ao sol, soltando-se como um aroma no corpo da brisa, outros como narrativas que se engasgam com os seus achados, deslumbramentos. Ele traz as suas “coincidências ensaiadas”, mas sem aquela sensação de ouvir um coro, sem ficar num registo só, vai testando soluções, inseguro, “carregando alaúdes dentro da cabeça”, viajando literariamente.
A certa altura, fala de um “cemitério de morangos na tchescoslováquia”, e serve-se de um prego para coçar-se absorvendo algo mais: “mesmo contra a sua vontade/ resolvi enfim arrancar/ o velho prego de trás da porta –// aquele de que você,/ inexplicavelmente,/ tanto gostava// agora me ponho/ a descamar pesadelos/ & supernovas.” O poeta está ainda formando-se, naquela virtude atenta de quem colhe materiais, incitando-se a ser “bem mais que lira cava/ Entre ratos, várzea e lume,/ Alaga os quartos de hotel,/ E seca da faca o gume”… Ouvimo-lo achar-se nesse “idioma fraturado”, animoso, consciente de como “a beleza do mito repousa/ em um complexo/ de falsas/ inconsistências”, e isto despertando para a forma como se originam os mitos – o calcanhar de Aquiles, por exemplo –, e vê o ganho na fragilidade de uma tão calculada ilusão, afirmando que “por vezes, mais parecem/ lapsos de um bardo// afoito”. Ele mesmo é esse bardo que não enjeita as irregularidades, esse lado imprevisto no génio das coisas, e que se nos entranha, invade os sentidos com a sua “ternura líquida”. Explica como pode essas coisas difíceis recorrendo a imagens claras, tocantes: “como essas sandálias,// que pendem tão irresponsavelmente/ dos teus pés,// vaga/ criatura/ radioactiva.// revolves, reviras// tuas articulações”.
É breve este segundo livro de João Gabriel Madeira Pontes. Não é uma arca para enfrentar o dilúvio, está mais perto de ser um ensaio de decifração, de tal modo que na terceira parte do livro os poemas exigem que o leitor componha as sílabas como um puzzle para chegar ao poema. Eis um exemplo, sem os cortes: “farfalha a fênix nas frestas da folhagem fulgor de figueira inteira no fito de um fruto que já foi fóssil para nos ensinar o eclesiastes”… O sentido, ao combinar-se, ganha com o encaixe das peças um embalo sonoro que torna tudo mais gratificante. Pontes é um poeta que, precisamente por não estar totalmente confiante das suas capacidades, tem do seu lado esse rasgo de um pássaro que tanto como enche o peito e mede o silvo, sente o arrasto da própria voz, e parece engolfado nela. Mas tem, ao mesmo tempo, já uma experiência calma, compenetrada do território, do tempo que faz e de como o canto se transporta. Há neste livro notas de sobriedade tão impactante como o é o garridismo de outras alturas. No poema “rua dos juízes”, começando numa espécie de corte, diz: “morre-se qual palavra/ falada,// crueza de sílaba na mesa/ do legista”…
Há aqui a maturação de um registo que se faz valer de já não restar outra inocência senão a clareza de que, no fim de tudo, quando a ilusão já soprou todo o ar que tinha nos pulmões, resta o que há de mais duradouro, essa flor final que os vermes livram da carne: os ossos. Madeira Pontes já começou a libertar-se da “carne estéril de cilício”, para respeitar uma exigência final, como uma pedra que ficou no leito de algum curso de água e absorveu no seu silêncio aquela música acerando-a. “Pulsa, palpita, emparelha/ A pavana provençal,/ Propensão de uma centelha,/ Ímpeto do teu sarçal,// Esse adorno incandescente/ Atrás da encosta de Horebe,/ Essa bússola sem norte,/ Que te morde, que te bebe,// Que dissolve a tua medula/ Em visgo cáustico e ativo”.
Assim, como um vago herdeiro numa longa linha de sucessão, pressente-se nele a confluência das lições dos modernistas, dos concretistas, e outros istas – sendo certo que “dentro do artista,/ Dão-se paz e pandemônio” –, tudo isso joga no descoser e recoser da frase, essa que tem a noção clara do branco, como um silêncio de tela, como se o verbo se pintasse nela… Ele diz-nos que “a força do silêncio,/ que engrossa o caldo dos anos/ é-me irresistível.” E aqui sente-se não só a disciplina, mas a clareza de que a poesia só surge como acaso depois deste se ter erguido sobre o mastro do rigor, avistando bem mais longe do que o alcance comum, em invés de se ficar balouçando na ponta do fio de si mesmo.
“Tal o viço do brocardo:/ Não existe sinfonia/ Sem um quinhão moderado/ De total desarmonia”, lemos a certa altura, ficando claro que Madeira Pontes leu com gosto e fez do gosto a sua lição para também não ser atirado do cavalo. Sente-se nos versos a humildade de quem admira mestres, a ponto de ter tantos, e muitos ainda vivos. Autores como Paulo Henriques Britto, que apreciam e desenvolvem hoje a arte de dominar a forma clássica, segurando a respiração pelo freio. E deste poeta, a título de exemplo, leia-se a tão actual advertência: “Cuidado, poeta: o tempo engorda a alma./ Depois de um certo número de páginas/ anjos não pousam mais nas entrelinhas./ E até a lucidez, essa moderna,/ também se gasta, como qualquer moeda.// O ter o que dizer é jogo arriscado,/ não se resolve com um só lance de dados./ Não basta a precisão do gesto apenas./ O gesto mais felino é quase nada/ sem o lastro da existência (…) O tempo é escasso. O dicionário é gordo./ Cuidado: Todo silêncio é pouco.”
Assim, Madeira Pontes cultiva a sua juventude como flor de uma árvore milenar. Percebe o ganho claro que há na poesia em jogar dentro de certos limites, servir-se do confinamento para se soltar: “Par de sólidas algemas/ Que concedem liberdade.// Isso explica a intrepidez/ E o arranque apaixonado/ Nas trovas de Don Hernández/ Ou de um Camões inspirado.// E ainda pregoa o fogo,/ Resumindo em tabuleiro:/ Forma é, além de tudo, jogo/ No qual ganha o trapaceiro”.