A manipulação dos afectos na política


Mobilizar os afectos, em política, tem por objectivo, regra geral, condicionar os auditórios de tal modo que aceitem as mensagens sem discussão, sejam elas quais forem e por mais vazias que sejam.


A manipulação dos afectos, e pelos afectos, sem qualquer conteúdo político relevante, já vem de muito longe. Não foi inventada, foi apenas adoptada pelo actual Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, como forma que julgou ser a mais adequada à consolidação do seu estatuto de “comentador-mor” do regime, muito mais do que de chefe de Estado e comandante supremo da Forças Armadas. Direi mesmo que, por vezes, em vez de garantir “o regular funcionamento das instituições democráticas”, este PR acaba por ser agente ou factor de perturbação e instabilidade da vida política democrática, com os seus constantes comentários abusivos e inoportunos. 

Aquilo a que o Marcelo PR chama “política dos afectos” ou “política de proximidade” também serve para confortar e explorar o seu narcisismo mais do que evidente, assim como a superficialidade do seu ideário político, reduzido a fórmulas demagogicamente claras, curtas e persuasivas, das quais está ausente qualquer argumentação sólida ou mensagem consistente. O comentário “entre portas, curto e claro”, tem sido, ao longo dos anos que já leva de mandato, uma especialidade de Marcelo PR.

Como salientou, há cerca 20 anos, o investigador e sociólogo Philippe Breton, num estudo clássico sobre “a palavra manipulada” (La Parole Manipulée), “o discurso que só convence pela clareza é um discurso que não convence por outro motivo”, isto é, pelos argumentos que eventualmente propõe. Ora, é um facto que a clareza seduz, dá a ilusão de se adaptar ao público, que não tem de se esforçar para aceitar o que lhe é proposto. Ou seja, a clareza do estilo não é, neste caso, uma pedagogia, mas sim uma demagogia do discurso. E a manipulação começa quando essa clareza já não é um simples acompanhamento da argumentação, mas se substitui a esta.

A “clareza” é, muitas vezes, parceira da “brevidade”, hoje promovida ao estatuto de “estilo convincente”. Assim é, realmente, na publicidade e na propaganda, e assim é também na política. Vem a propósito recordar Tácito (57-117 d.C.) o historiador e senador romano especialista em retórica, ao salientar que, durante o Império, todos os discursos se tornaram curtos, enquanto, durante a República, os oradores e o público levavam todo o tempo necessário para expor e reflectir. Nos tempos actuais, também foi ultrapassada a era dos longos discursos, dando lugar a charlas, palpites e intervenções breves, de cinco minutos no máximo. O “formato curto e claro” tornou-se, assim, o padrão de toda a mensagem que pretenda ser persuasiva. 

A “sedução pelo estilo” é outra parte integrante do discurso político. Se for um “bem-falante”, o orador tem tendência a ser mais convincente, aparentemente sem outra razão. A manipulação começa quando o “bem falar” se substitui a qualquer argumento consistente. E é assim que o “bem falar” se dissocia completamente do “argumento” para se tornar, por si só, o centro das atenções. A “sedução pelo estilo” manifesta-se igualmente pelo comportamento do corpo e pela forma como este se apresenta, o que é facilmente associável ao narcisismo do “bem-falante”, sempre atento à sua imagem e ao efeito que está a projectar. Por exemplo, há várias fotos de Marcelo PR a distribuir afectos, sobretudo abraços, nas quais ele está a observar, pelo canto do olho ou por cima do ombro de quem ele abraça, o efeito que está a produzir. Não resiste a olhar para o fotógrafo e para as câmaras de TV, para ver se estão a captá-lo. 

É óbvio que, em política, o protótipo do sedutor é o demagogo, personagem já bem conhecida na Grécia Antiga. Eurípedes (480-406 a.C.), um dos grandes poetas trágicos e dramaturgos do séc. v a.C. (o “século de Péricles”), já descrevia com rigor a figura do político “capaz de se adaptar às circunstâncias mais desconcertantes, de assumir tantos rostos quantas as categorias sociais e espécies humanas que habitam a cidade, de inventar mil habilidades para tornar a sua acção mais eficaz nas circunstâncias mais variadas”. Como salienta Breton, o político demagogo deseja convencer vários públicos de que é ele o melhor candidato a determinado cargo ou o melhor titular do cargo que desempenha. Para tanto, vai fazer crer às suas diferentes audiências, recorrendo a estratégias diversificadas, que elas pensam como ele – e ele como elas.

Entramos aqui no domínio do mais puro cinismo. Quinto Túlio Cícero (102-43 a.C.), político e general romano, irmão mais novo do famoso Cícero, é autor dum famoso “Pequeno comentário sobre como ganhar eleições” (“Commentariolum Petitionis”), no qual sustenta que é necessário desenvolver “o sentido da lisonja, vício considerado ignóbil em qualquer outra circunstância, mas que, numa campanha eleitoral, se torna uma qualidade indispensável (…) obrigatória num candidato cuja fronte, cujo rosto e cujos discursos se têm de ir alterando e adaptando aos sentimentos e ideias dos seus interlocutores de cada momento”. Ou seja, ele não tem de manifestar o seu ponto de vista, têm é de colar-se ao ponto de vista dos seus interlocutores.

Em suma, mobilizar os afectos, em política, tem por objectivo, regra geral, condicionar os auditórios de tal modo que esses auditórios aceitem as mensagens sem discussão, sejam elas quais forem e por mais vazias que sejam. Se o político é um sedutor, então o que ele diz só pode ser convincente. Já quanto ao manipular, consiste sobretudo em paralisar a capacidade de ajuizar do receptor, ou seja, de quem está a ouvir, fazendo tudo para que este abra a sua porta mental a uma mensagem ou a um conteúdo que, de outro modo, nunca teria aprovado ou lhe seria indiferente.

Ao invés do que costuma afirmar Marcelo PR, os portugueses não são “os melhores do mundo” praticamente em todos os domínios que ele decide eleger cada dia. Trata-se duma manifestação ridícula de narcisismo que ele transfere para cada auditório a que se dirige, passando-lhe a mão pelo lombo e esperando que ele lhe devolva os elogios e o reeleja Presidente da República na altura própria. Dada a sua ambição desmedida de protagonismo constante, chego mesmo a interrogar-me sobre se Marcelo não se terá feito eleger Presidente para passar a fazer vários comentários diários, perante todos os órgãos de comunicação social, e não apenas um comentário por semana perante um único canal de TV? Não, não estou a brincar, digo isto muito a sério!

Campo d’Ourique, 10 de Junho de 2019

 

Escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990