Podemos concordar ou não com a delação premiada. Achar que é apenas uma influência do Brasil ou ser da opinião que, com o evoluir do crime (que é cada vez mais complexo e transnacional), os instrumentos da justiça também devem ser aperfeiçoados. Facto é que entre governantes e responsáveis da justiça muitos são os que vão fugindo ao tema, guardando para si o que pensam sobre a concessão de benefícios a quem se arrepende e decide contar o que sabe, possibilitando muitas vezes o que a justiça sozinha nunca conseguiria: a descoberta da verdade.
Esta quinta feira, o diretor da Polícia Judiciária aproveitou o seu discurso na Conferência Internacional de Integridade Desportiva, que aconteceu no edifício-sede da PJ, para fazer o que poucos têm feito: assumir uma posição e contribuir para que no país se abra espaço a uma discussão.
“Temos de lutar por um verdadeiro estatuto do arrependido, em que a sua aplicação não tenha apenas lugar na fase de julgamento. Há que ter confiança, o estatuto tem de passar para a fase de inquérito. Temos de nos deixar de cinismos e dizer ‘chega’ se queremos combater este tipo de criminalidade, em que as organizações criminosas têm um avanço de tal forma grande que não é possível recuperarmos o atraso”, disse Luís Neves, recordando que quando era magistrado se sentia frustrado por, muitas vezes, à falta deste instrumento, ser o arrependido o único a ser condenado. A coragem que o responsável pediu para que o debate avance não é compatível com o silêncio de muitos.
No mesmo evento, também Amadeu Guerra, antigo diretor do Departamento Central de Investigação e Ação Penal e atual procurador-geral distrital de Lisboa, reiterou a sua posição: não faz sentido um futuro em que os denunciantes continuem a ser os principais prejudicados.
Se, por um lado, é certo que em 2016 a ministra da Justiça deixou claro ser “importante e possível” um debate sobre a delação premiada, por outro, a verdade é que esse debate, ao fim de quase três anos, ainda não aconteceu. E não aconteceu muito por falta de coragem dos atores da justiça e de quem governa o país.
Em Portugal, quem se opõe a este instrumento cola-o ao Brasil, tenta aproveitar-se de complexos e preconceitos em relação ao outro lado do Atlântico para que até o cidadão comum tenha uma opinião contrária a algo que porventura desconhece. Mas a delação, como Francisca Van Dunem já o disse, não é algo exclusivo do Brasil. Muito pelo contrário. “Os acordos sobre a sentença têm aplicação em ordenamentos com matriz jurídica e constitucional idêntica à nossa, como são os da Alemanha e de Itália, e baseiam-se num instituto sedimentado no nosso ordenamento – a confissão, da qual já hoje se extraem consequências processuais”, recordou há três anos a governante.
Quando li as declarações de Luís Neves lembrei-me de um silêncio paradigmático. Em 2016, numa entrevista que fiz ao então procurador- -geral da República do Brasil, Rodrigo Janot, este revelou-me o que até então não se sabia em Portugal, ou seja, a posição da sua congénere portuguesa, Joana Marques Vidal.
E também ele se esforçou por descolar este instrumento do Brasil: “Em alguns [países] é plea bargain, na Itália temos o patteggiamento”.
Concluindo, a dificuldade em Portugal em assumir uma posição sobre o tema, em lançar um debate, é tanta que nem a anterior PGR, conhecida por ter pulso forte no combate à grande corrupção e à criminalidade mais complexa, se arriscou a fazê-lo em público.
Mas tê-lo-á feito em privado, segundo me contou Janot nessa nossa conversa. “É pecado não usar delação”, disse, acrescentando: “A dra. Joana Marques Vidal está de acordo com isso também”.
É por tudo isto importante o apelo ao debate feito pelo diretor nacional da Polícia Judiciária, seja qual for a decisão final.
Jornalista